A memória mais antiga que eu tenho é a de tentar alcançar meu pai quando ele saía de manhã para ir trabalhar. Ficava tentando correr e alcançar a porta antes que a babá me impedisse de sair, infelizmente eu nunca venci essa corrida, sempre atônito por sentir pelas primeiras vezes na vida o terror sem medida da perspectiva de perder quem se ama.
Lembro também quando meu pai voltava e da alegria que eu tinha em vê-lo, afinal não tinha desaparecido no mundo. Bem ao contrário, sempre foi muito fácil encontrá-lo, sempre a cuidar de seus negócios, junto de seus empregados, na casa da mãe num fim de tarde para tomar o seu precioso café.
Entre nós esse mesmo homem parecia menos agitado, embora sempre muito sereno. Deu-me por essas observações a postura de discrição e zelo que tenho tão bem impressas no meu jeito, seu pudor incomensurável em ferir, sua grande gentileza com todos, sua piedade feita de sensibilidade e materializada aos merecedores e aos não-merecedores dela.
Meu pai nunca foi um sujeito emotivo e exagerado, mas nunca deixou de dizer que nos amava. Dizia-o nos gestos de desprendimento, dizia-o no apoio às decisões, dizia-o no orgulho que só admitiu uma vez quando eu já era homem ao ver-me colar o grau de bacharel há uns poucos meses.
Uma vez quando eu contava com meus 11 anos, brincando num galpão do sítio, tive a brilhante idéia de tentar abrir uma porta de frigorífico de uns 300 quilos que estava encostada na parede. A minha alavanca só serviu para fazê-la tombar sobre o meu corpo implacavelmente e só fui salvo porque do meu lado esquerdo havia um saco de café que criou um vão entre a porta e eu, mas esse bendito saco de café não impediu que eu ficasse preso na porta tombada. Para piorar a queda no chão acabou por cortar o couro cabeludo na nuca, de modo que a ferida sangrava muito.
Depois de gritar por socorro 5 minutos seguidos, apareceu um dos empregados do sítio que chamou outros e meu pai. Meu pai olhando a cena perguntou se eu me sentia bem, se sentia todas as partes do corpo e eu disse que sim, acho que ele manteve a calma porque eu estava consciente, mas de todo jeito ele dificilmente teria perdido o controle, qualquer que fosse o caso.
Levantou a porta com a ajuda de outro homem, olhou minha nuca e com um lenço limpou o sangue e segurando sobre o ferimento para estancar a sangria, carregou-me até o carro, dizendo ríspidamente, mas sem gritar: "abram caminho".
Depois de levar lá uns 5 pontos e ir pra casa, mais anoite via meu pai falando que a minha curiosidade em tentar abrir uma porta de frigorífico de 300 quilos encostada na parede era pela minha capacidade investigativa, sim, o método é que era arriscado, mas investigar portas é algo completamente normal! Sempre ficava imaginando a terrível condição de ter que agir nesses casos e desejava bem fundo agir sempre como meu pai, com calma, precisão e uma elegância em saber que é a pessoa certa a estar no lugar exato.
Quis por toda vida guardar tão serenamente a tristeza para mim sem entristecer os outros, quis nunca deixar os outros verem-me chorar só para não fazer crescer a dor deles, quis tocar a fragilidade de tudo com tanta decisão e praticidade, mas quis tudo inutilmente, pois ao contrário do meu pai eu não sou um homem de poucas palavras e tampouco de evitar sempre todos os exageros. Ainda assim guardo essas verdades com muito zelo e associo cada uma dessas nobres virtudes ao meu bom pai.
Esse homem simples, discreto, a viver sempre sem ambições maiores que a paz de não ter de brigar ou discutir, a segurança de ter a felicidade dos seus, o prazer de andar na sua moto de 450 cilindradas e fumar seus cigarros com os botões da camisa abertos, nunca disse que me ama e nem precisa.