quinta-feira, fevereiro 10, 2005

Lamúrias de um quase centurião romano

Sobre a mesa do restaurante, muito apropriadamente coberta com uma toalha xadrez em vermelho e branco, um homem já idoso sentou-se sem chamar a atenção de ninguém. Ao invés de encontrar por cima da mesa o saleiro, o vidro de pimenta, o de azeite e o paliteiro esse senhor percebeu que não havia nada e chamou pelo garção: "Meu filho, vê os temperos e o paliteiro, vocês tem de ser mais atenciosos, não como sem isso" e de resposta recebeu com alguma secura e pouca surpresa: "senhor Eduardo, são 9 horas da manhã, o almoço só é servido à partir das 11horas e 30 minutos", retira-se o garção e com os olhos na calçada fica o senhor Eduardo.
Depois de 10 anos como aposentado é difícil manter a calma ante o tédio da manhã. Para esse aposentado é pior que para os outros. O senhor Eduardo é general reformando, teve uma vida com muita ação e muito êxtase. Afinal, para um militar não se poderia considerar de outra maneira o período do regime militar em que milhares desapareceram e outros tantos foram mortos por "incompatibilidade política". Incontáveis foram as madrugadas nas celas de delegacias em que o charuto do então coronel Eduardo enfestava o ambiente com seu cheiro pesado de tabaco e preconceito, ao pesar indizível dos olhares de suas vítmas e no entremeio à fumaça e à luz forte da lâmpada naquele ambiente obscuro em que os pesadelos mais criativos são apenas piadas de mal gosto.
Há homens que revelam um prazer imenso com o poder, sentem-se como a razão da vida e do mundo exercendo sua influência e tornando-se visíveis a todos empunhando discretamente o símbolo de sua autoridade. A crueldade do coronel vinha muito desse seu orgulho, do prazer em afirmar que tratava-se de um homem "extraordinário", que não admitia ser contrariado. Junto desse seu prazer macabro, o mesmo orgulho impunha-lhe toda subserviência aos seus superiores, já que sua ambição era poder mais do que podia e não poupava gentilezas e cordialidades no trato social, nem tampouco eficiência no trato profissional tratando de "interrogar" os suspeitos e "deportar" os criminosos condenados por exceção.
Em casa não tirava a farda o nosso coronel Eduardo, que policiava a leitura dos filhos e ignorava os apelos da mulher para saber porquê sempre chegava tão tarde e tão irritado, ela não sabia, mas quebrar o espírito dos outros é muito cansativo, principalmente de quem age por algo que acredita com toda alma, o que espantava muito nosso coronel, que considerava essa conduta como "estúpida", e não é para menos, seu único ideal era ele mesmo.
Mas depois de tanto suor para torturar, depois de tanta medalha sem mérito sobre o peito, depois de tantos tapinhas nas costas dos lambe-botas maiores e de tanto deboche com o próprio país, resta sobre a mesa do restaurante essa figura decadente e envelhecida, sem mais poder ou influência, sem orgulho ou ganância, sem mais as baforadas pretensiosas e mal educadas no rosto dos seus subalternos.
A anistia ampla e irrestrita promovida no Brasil não foi suficiente para livrá-lo dos olhares de todos que sabiam daquele passado imperdoável. O grande subvertor da inteligência nacional, da cultura, da liberdade política não conseguia ver que o inimigo vencera. Numa negativa temente dessa verdade, apegado ao antigo modelo de ser, falar, pensar e agir, o novo Brasil era uma tortura para Eduardo, com o perdão da palavra, talvez não muito apropriada, mas talvez fosse isso mesmo: depois de tanto torturar, o torturador sentia-se torturado com a realidade que as suas unhas sujas não conseguiram sufocar e dia a dia o Brasil veio à tona com aquela tosse de afogado apontando para o assassino com o indicador direito: "foi ele!"
Os filhos casaram, a esposa morreu e sozinho na sua maravilhosa cobertura ele rememorava o que não era mais e de alguma forma pensava em como dar de comer ao seu orgulho, num exercício de imaginação que podemos realmente considerar como de bravura. Imerso nesses pensamentos e considerações sem fim as manhãs duravam um ano inteiro, sempre abruptamente interrompido pela necessidade de dar de comer a si próprio e sonambulamente ia a esse mesmo restaurante, sentando-se à mesma mesa e usando os mesmos temperos e paliteiro.
Esta manhã em que foi ao restaurante às 9 horas ao invés de às 12 como era seu costume, percebeu que seu ímpeto não faria as coisas serem como ele quisesse, como era antes, e compreendeu que terá de esperar o tempo passar, como todo mundo.