Ontem tive uma conversa muito produtiva com meu vizinho Luciano Amparo. Ambos estávamos na praça do bairro (agora reformada e apta a receber os namorados, para a alegria dos poetas), quando não pude deixar de reparar a sua angústia ao observar uma senhora de meia-idade carregando junto ao corpo uma sacola de compras cheia de guloseimas, como doce de leite, iogurtes, figos em calda, bombons e assemelhados.
Meu vizinho perdera o olhar fixo que observava a partida animada de futebol de salão, para seguir passo por passo a tragetória da senhora com seus embrulhos sortidos. "Que foi, Luciano? Sua mãe não te deu sobremesa hoje não?", "Não, briguei com a minha maninha, só ganho chocolate no sábado... já tentei levar a dona Maria [dona da padaria da esquina] no papo, mas ela é esperta, sabe que eu só faço tratos quando tou empedido... como ela sabe dessas coisas? Eu e o Paulo [irmão mais novo do Luciano] achamos que ela vê o medo nos olhos, como os leões antes de atacar e daí sabe que é algo errado..."
Conversei com o Luciano mais uns bons vinte minutos sobre o 'olhar da padeira' e tentei convencê-lo a não imaginar coisas, mas no alto de seus 7 anos completos, essa é a pior estratégia. Daí em diante, quando percebi que bancar o pedagogo de fim-de-semana não iria adiantar, resolvi mudar o enredo.
"Sabe, Luciano, eu não devia te contar isso porque é o segredo internacional de todos os adultos e nós prometemos quando completamos 18 anos a nunca revelar a uma criança." Nesse instante seus imensos olhos verdes ficaram com três vezes mais brilho e mais saltados, não piscava, não salivava, a goma de mascar imediatamente jogou longe, ficava apenas olhando para e repetindo efusivamente à velocidade de 15 vezes por minuto: "o que é?"
Daí vi que já podia prosseguir, sabia que sua mente gravaria para sempe cada palavra, por isso tratei de ser bastante cuidadoso: "Com 18 anos, é-nos revelado que jamais poderemos novamente ver as flores do mesmo jeito, nem amar os animais da mesma maneira, não teremos mais a faculdade de sorrir simplesmente porque amanheceu um dia de sol, nem tampouco seremos indiferentes às garotas bonitas..." Essa saiu sem querer, não pude evitar. "Mas em compensação a não ver mais o mundo como criança, ganhamos uma nova habilidade: o poder de sonhar com o que quisermos" Nesse momento Luciano deixou o queixo cair um pouco e ao perceber seu espanto ante à revelação do segredo, prossegui mais confiante. "Há os que desejam sonhar com a família que mora noutra cidade, daí passam todos a sonhar o mesmo sonho e a festejar e a rir até fartar-se por estarem juntos de novo, outros sonham em conquistar um amor secreto e seu sonho é justamente um encontro feliz e afortunado dos dois onde tudo é perfeito, outros ainda preferem usar essa mágica habilidade para prevenir as desgraças que a vida vai trazer e tem sonhos tumultuados, cheios de cobradores bravos e chantagistas de bigodes finos com o cabelo penteado para trás e cheio de gel. Os adultos vivem no mundo de seus sonhos e quando acordam ficam às vezes frustrados pelo fim do sonho, às vezes aliviados, mas de todo jeito sempre acordam. A dona Maria deve ter pedido para sonhar com todos que mentiriam para ela no dia seguinte e então, entre o marido e a filha adolescente, estava você, docemente tentando ludibriá-la a vender-lhe chocolate."
O garoto engoliu seco rememorando a vergonha de ter sido pego em flagrante sem perceber e balançando a cabeça pra frente sistematicamente interrompeu: "Pois é verdade, quando entrei na padaria ela já me olhava de outro jeito!" Ficou quieto um instante e depois começou a fazer o que as crianças mais fazem, ou seja, perguntou: "E do segredo ao completar 18 anos, pode-se não querer saber e simplesmente continuar vendo tudo como criança e ainda não decidir sobre o que se vai sonhar?" Muito bem, pensei eu, "uns acham que é inevitável deixar de ver tudo como criança e passar a desejar os sonhos que quiser..." Depois perguntou o que eu achava e eu disse "na verdade acho tudo isso uma grande bobagem, por que ver as coisas de um jeito que não são? Por que sonhar se pode-se viver?" Daí Luciano fez sua consideração mais apropriada: "é justamente o que eu acho disso, mas com outras palavras", "pois sim? E quais seriam?", "ser adulto é complicar tudo o que é mais simples".
Eu, olhando meu amiguinho de 7 anos de idade com um sorriso, concordei sem pestanejar e convidei-lhe pra ir tomar um sorvete, sem nenhum receio de desfilar com o gelado na frente da dona Maria, a padeira.