Ontem fui ao médico marcar exames de rotina, fato que por si só quebra a rotina de uma maneira que antes eu não consegui prever, não porque é inusitado o fato de ser examinado, mas precisamente porque tinha me esquecido completamente da personalidade jovial e madura do meu médico de muitos anos, o dr. Alfredo Lousada.
Na verdade é preciso esclarecer um fato incômodo em alguma medida: não gosto de médicos. Acho-os muito mecânicos às vezes e quando estão numa festa parecem nunca conseguir se divertir, sempre olham para os sapatos das pessoas e fazem uma cara horrível se alguém pergunta algo sobre a saúde, mesmo uma pergunta inocente. Enfim, impressões de alguém que nunca gostou de ir a médicos e ficar esperando na antessala junto de um exemplar da revista Caras de 2002. À parte desse sarcasmo preconceituoso contra a nobre profissão de médico, não simpatizo mesmo com a classe e tenho dito.
Há algumas figurinhas, entretanto, que tem a grande facilidade de ludibriar esses pensamentos formados por anos e destacar-se com simpatia e mesmo alguns médicos atingem a façanha, como é o caso do dr. Alfredo.
Já havia muito tempo que não ia ao seu consultório, por alto uns 3 anos, e tinha me esquecido que havíamos conversado muito sobre a profissão de médico e de advogado e talvez por ter ficado à vontade demais acabei apresentando a tese jurídica de que os médicos são 'mecânicos de luxo', segundo a boa defesa deles, "com a diferença que mexem no 'motor' com ele ligado", com exceção dos legistas! O dr. Alfredo ria-se imensamente dessas bobagens e me lembrava que os cientistas estavam substituindo com pressa os ratos de laboratório pelos advogados e com boas razões: a primeira é que eles se afeiçoam menos aos advogados e a segunda é que os advogados aceitam fazer coisas que nem os ratos de laboratório aceitariam fazer. Enfim, um encontro cordial.
Nesta visita de ontem ao dr. Alfredo ainda notei o mesmo bom humor e espírito libertário e tranqüilo, talvez perturbado unicamente pelas artrites que a idade lhe trouxe, mas ainda cumprimentava os amigos erguendo os dois polegares perto da altura da cintura, sua característica marcante.
Agora já formado, sentei no sofá branco do consultório de otorrinolaringologia de outro modo, na curiosa ascenção social que os títulos acadêmicos promovem, principalmente quando seguidos de reputação ou êxito, embora eu não ache que o meu seja seguido disso ainda, afinal sou um recém-formado. Deste modo a conversa fluiu mais séria e embora eu achasse que fosse só uma introdução para falarmos por fim dos exames, acabamos por falar de muitos assuntos, como velhos amigos na afindade que sempre tivemos.
Eu olhando o semblante do médico via o estudante de uma vida inteira, aborrecido até com os diagnósticos enfadonhamente repetidos e cansado das mães acompanhando seus filhos e também se consultando para aproveitar o ensejo. A testa marcada e o jaleco mais cumprido do que os usados pelos mais novos. Sua testa frisada deixou claro de onde vinham as marcas ao falar do filho, afinal eu o conheço do colégio, e comentou da sua tristeza pela morte de uma amiga num acidente de carro, e estranhamente comovido pela tristeza do filho, adentrou na minha prosposta de discussão sobre a fragilidade da vida e deu suas conclusões sempre com muita gentileza e praticidade.
Eu relembrei, mas sem mencionar, da morte do irmão de uma amiga de infância há poucas semanas em circunstâncias parecidas: um acidente de motocicleta aos 28 anos e a três semanas de casar-se com seu amor da vida inteira.
Dr. Alfredo mencionou o enterro e de como a jovem face do filho pareceu, pela primeira vez, a de um homem, no vinco que a tristeza marca no rosto sem consentimento. Que chorou sem fazer barulho e não reclamou de usar terno.
Olhando pra baixo falou do que pensava como quem fala de algo consumado e quis ainda disfarçar a sua tristeza e de uma maneira muito madura e muito elegante, falou devagar e construtivamente da sua juventude e do que pensava que iria acontecer e passava a impressão segura de estar feliz com o rumo das coisas, de ter se afeiçoado à sua rotina de uma maneira bastante produtiva e de que, como eu já penso há um tempo, certas coisas simplesmente tem de ser feitas.
Com a expressão e o espírito mais descansados, mais leves e tranqüilos, deixei seu consultório com uma excelente disposição, não propriamente do corpo, mas essencialmente do espírito na satisfação de dividir com outro membro produtivo da sociedade alguma angústia da vida, velada normalmente nos sorrisos formais.