quarta-feira, fevereiro 16, 2005

Morte do amor do mundo

Deixei de considerar que a face do acaso tem sua magia. Não, agora não tem mais para mim. Pretendo ver no acaso apenas uma circunstância não prevista, que é o que ele é mesmo, e não mais a prenunciação divina de algo ou de alguém que representa especificamente a tragédia ou a glória.
Mergulhado em pensamentos sempre colocados em fila, antevi mais de uma vez que a magia do mundo é nosso fraco desejo de que as coisas sejam menos mecânicas, menos previsíveis, menos tolas e aborrecedoras. Um remédio pretensioso até considerando o que ele pretende curar.
Sem mais essa parca ilusão que a tradição milenar incrustou no nosso espírito, ainda procuro rir das coisas tolas pela sua inocência em ser e assim elas parecem mesmo engraçadas. Não diria ridículas, porque para isso precisariam ser de um outro tipo, precisariam ser maliciosas e tolas, uma combinação tão deprimente quanto impotente à sua pretensão de malícia.
Ainda sinto-me bem perto da natureza, sim da natureza calada, lenta, discreta e tão poderosa. Procuro ver dentro de mim os sentimentos ancestrais de estar nessa condição de bicho, de ter o ar fresco para respirar, de sentir o cheiro do mato, ver os bichos, ouvir o vento e o silêncio maior que mora em tudo. A natureza não está nunca alvoroçada para chamar atenção de todos e por isso mesmo não fica gritando e perturbando os outros, apenas vive e isso já é quase tudo.
Animal político que sou, entretanto, tenho na solidão minha grande inimiga e como as pedras não gostam muito de discutir filosofia, tou sempre entre homens e só vez ou outra lembro-me que também sou bicho.
Esses meus amigos de tantos anos que eu sinto agora tão distantes, seja pela distância iminente, seja pelo calado nos nossos olhos dessa grande tristeza que é amar e perder. Pois partilho apenas com meus amigos essa minha triste sina de viver constantemente apaixonado e ser o meu amor um grande cadáver que dá seus espasmos de vida, mas não vive.
Talvez a roda da vida tenha-me apresentado os sorrisos errados na hora errada e eu esteja subvertendo tudo para uma visão mais sombria de como tudo isso funciona, mas cá dentro eu sei que conheci os sorrisos certos na hora exata e o hálito de cada um funcionou como um grande catalizador de todas as conclusões que tenho sobre a condição humana e o amor do mundo e senti de dentro do sua constituição gastrorretal a verdade que os esforços para fazer desse mundo um lugar sem lutas ou desespero é apenas um sonho tão inocente quanto a própria esperança de amar até o fim.
O pobre do amor perde sempre, como a menina pobre que é recrutada para a vida de meretriz, o ideal de amor perde-se ante o desamparo e a avareza, ante a luxúria e os desejos de grandeza, ante o orgulho e a dissimulação. Daí sobra dele esse mesmo cadáver que dá espasmos e que eu tantas vezes, tão debilmente, tentei amar e trazer à vida em vão, sem compreender que não tinha o poder de fazer vivo algo que de forma alguma compreenderia o que é viver, num dilema sempre sociológico pautado em joguinhos estúpidos e cansativos.
Como uma árvore crescendo dentro de outra, sinto dentro de mim um cadáver espasmático crescendo onde antes era eu. Ele rapidamente toca todos os tecidos do meu corpo e eu percebo muito bem os seus risos e nas entrelinhas de suas piadas de duplo sentido tento acompanhá-lo nas gargalhadas que há algum tempo me teriam feito vômito. Ele fala das grandes e longas tardes de verão em que sobre o meu colo repousará a cabeça cheia de cabelos espalhados das mulheres que me amarão em vão e de como eu rirei dentro de mim da palidez do rosto delas quando não compreenderem meus gestos e duvidarem de onde eu vim. Ele massageia minhas costas e sussurando na orelha diz que parecer ao invés de ser gasta menos energia e dá melhores resultados. Entre o discurso de ambições e destempero e meu desassossego em não mais compreender o mundo, o corpo do cadáver parece cada vez mais ser o meu corpo e aprendo rapidamente a sua língua, descobrindo a sonoridade inebriante das mentiras e o riso velado ante as possíveis dissimulações, e num espasmo ainda meu, compreendendo que a morte do amor sobrevive à custa dessa legião de zumbis que a mágoa recruta.
Enquanto experimento esse terno bem passado, vestindo como um militar vistiria sua farda antes da batalha, trato de tomar a brisa que vem da janela como um suspiro vindo do além para dentro de mim e tendo cá no meu corpo a mesma natureza sua, trato agora de enervar meus brônquios e passar ao meu sangue como as moléculas de oxigênio mais metódicas que jamais pulsaram num coração humano.