segunda-feira, fevereiro 14, 2005

Viva os domesticadores

Na enfática demostração de que a convivência social é um valor maior e que os cães, assim como os gatos e outros bichos em menor medida e de outras formas, fazem parte dela, as escolas de adestramento ganham a sua importância para fazer com que não só os bichinhos sejam afáveis à conviência humana, quanto obedeçam a comandos que funcionam como campainhas de ordens em suas pequeninas mentes.
Cães e humanos começaram a conviver para benefício mútuo: os cães perceberam que junto dos humanos o alimento era abundante e os humanos adoravam não só a vitalidade e eficiência dos cães para a caça, vigília e o pastoreio quanto notaram sua lealdade como algo digno de admiração. Hoje os cães não desempenham a mesma função, mas ainda de beneficiam dessa admiração humana quanto ao seu caráter e a comida perto dos humanos continua abundante, mesmo que na forma de uma ração seca que só quimicamente incrementada pode lembrar o gosto de carne. Não que os cães não tenham mais essa função, muitos ainda trabalham como vigias, outros como policiais e farejadores de drogas. É notável, entretanto, que a grande maioria dos cães domesticados vive como um animal doméstico, alguns com prejuízo de seu histórico de utilidade para o trabalho. É o caso do Bouvier des Flandres, uma magnífica raça de procedência francesa que por centenas e centenas de anos trabalhou como cão pastor e com uma peculiaridade muito interessante: ao invés de morder a pata da ovelha ou vaca, como normalmente fazem os cães pastores, o Bouvier (boiadeiro) de Flandres, salta sobre o animal atingindo-o com as patas dianteiras, sem dúvida um espetáculo magnífico de interação entre homem e animal para o trabalho nessas nuanças estratégicas em que cada qual usa um talento: o bicho com sua força, destreza, e técnica para pastorear e o homem sua perspicácia ao convencer o bicho de que ele precisa da convivência humana e esse convencimento é tão antigo que está impresso na memória ancestral dos cães, já que as raças domesticadas hoje são naturalmente condicionadas ao contato com homens.
Os homens, acredito que da mesma forma, estão já condicionados a domesticar e criar cães, senão como explicar que bebês ainda bem pequenos não tem receio de tocar e brincar com cães, animais que estão um tanto longe de parecer com seus pais? Ou então nosso natural contentamento quando vemos filhotes de cachorros e como o mesmo não acontece quando vemos filhotes de abutres? A possível resposta é que esses animais fazem parte da nossa convivência social imemorialmente e sua presença é uma necessidade que se não é mais justificada pelo auxílio no nosso trabalho, ao menos não é mais na grande maioria das vezes, é necessária para a nossa perfeita e sempre atualizada compreensão de como o convivío social. Sim, não falo mais de homens domesticando cães, mas do contrário: cães ensinando convivência social à pessoas. De que outra forma compreender que os cães são os únicos amigos de tantas pessoas? De que os solitários tem neles mesmo os melhores amigos? Resta concluir que de uma forma ou de outra não souberam, ou não puderam, ou não quiseram relacionar-se com outras pessoas, seja porque não gostam de pessoas, seja porque gostam de cães, seja por uma coisa combinada com a outra.
Vivemos com a pretensão de que domesticamos os cães, mas ocorre o contrário: os cães com a sua lealdade e o seu carinho que nos causam tanta estima, lembram-nos da nossa natureza e da nossa condição mais primitiva, livrando-nos, durante os momentos de convivência canina, da era do egoísmo e do imediatismo onde tudo é tão selvagem e incivilizado.
Há mesmo juristas que defendem a consideração dos animais como detentores de personalidade jurídica, fato esse que possibilitaria que tivessem patrimônio e figurassem em demandas judiciais e mesmo tivessem direito à vida e demais direitos da personalidade e levando em conta a importância que os bichinhos domésticos têm no seio das famílias, sobretudo os cães, a tese pode até vingar algum dia.
Na verdade espero que os cães continuem com esse seu maravilhoso trabalho de nos domesticar, eles realmente tem feito um esforço por nós nesse sentido, e só cobram ração seca, de fato algum reconhecimento é merecido. Conclamo, portanto, todos a dar um grande viva aos cães: "viva os domesticadores!"