Ontem pensava se as pontas do mundo tem algum parentesco, pensamento talvez advindo da classe dos pensamentos que se tem depois de um bom almoço quando, sem pressa, pode-se descansar sem alardes nem prazos. É estranho imaginar que uma vaca tenha um valor aqui no Brasil e outro na Índia, como que abstraindo que cá esse animal é fornecedor de carne e leite, alimentos que compõem nossa dieta, lá é ligado por muitos cultos indianos à uma figura divina e que deve ser respeitada e reverenciada. Temos todos valores diferentes e não precisamos ir à Índia para compreender isso.
Na impressão de uma futura saudade, Priscila e eu fomos ao parque Halfeld tentar comprar a famosa pipoca do Trenzinho da Música Clássica, que fica em frente ao antigo palácio da prefeitura. Trata-se de uma pipoca especial, não qualquer pipocazinha que se faz em casa, pois tem um sabor diferente e um milho especial, é mais leve também, e no fim é mais divertido comer pipocas em parques que em frente à TV. Esqueci-me, entretanto, que domingo é dia de folga do pipoqueiro e ficamos um pouco frustrados, nada de mais, mas enfim, havia uma expectativa. Para não perder a viagem fomos passear um pouco pela rua Halfeld até a praça da Estação e depois na Antônio Carlos e nesse trajeto é que estalou-me de novo a noção dos disparates de valor.
Como de praxe a rua Halfeld estava cheia de ambulantes, mas estranhamente numa quantidade menor do que de costume, havia mesmo um certo ar de tristeza entre eles e tentei não me aprofundar em entender aquilo, mas na sanha de captar aquele ambiente, acabei deparando-me com uma capa de disco de vinil em que estava escrito "A arte de Vinicius de Moraes", evidentemente fui até lá ver o disco. Trata-se de um disco duplo lançado em 1976 que tem canções até então inéditas e declamação de poemas e inclusive da tocante crônica "Pedro, meu filho", é o caso de um disco que foi produzido por Vinicius de Moraes, um dos últimos, por sinal, e diferentemente dos que vieram depois de sua morte, funestos tributos, esse conta com sua sensibilidade de seleção e interpretação integrais.
O vendedor era uma daquelas figuras que parecem saídas de trás das portas com um punhal na mão, os olhos esbugalhados e a boca serrada, taciturno e quase monossilábico, respondeu à primeira pergunta com as palavras: "dez reais". De emenda, adiantou-se para dizer que o disco estava em perfeito estado, sem arranhões ou avarias, sem nenhum problema que pudesse comprometer o seu uso. Evidentemente eu estava calado porque não esperava encontrar aquele disco e tanto mais por aquele preço, já que é um disco raro, tem 29 anos e estava em excepcional estado de concervação. Por alguma razão, (talvez por ter pouco dinheiro na carteira) ainda pelejei por um preço mais baixo sentindo-me o pai de todos os caras-de-pau desse mundo e por fim paguei ao vendedor. Ainda fomos a um bar beber qualquer coisa e depois voltamos quando tava anoitecendo.
Em casa eu olhava para meu "A arte de Vinicius de Moraes" e pensava no prazer que seria ouvir aquilo que estava secretamente oculto nos dois discos pretos imensos. "Há um toca-discos na casa da minha mãe" foi o primeiro pensamento, e depois considerei ainda mais sobre como era um privilégio ter aquele disco, em como alguém poderia ter se desfeito dele, e pior: como alguém poderia vendê-lo por 10 reais. Talvez possam alguns argumentar que é só um vinil velho, mas isso seria insanidade demais e para argumentar isso teria de ser alguém que tem a dieta baseada exclusivamente no consumo de capim. É um disco muito especial e qualquer um deveria saber disso.
É exatamente isso o que os indianos pensam sobre a sacralidade das vacas e que nós pensamos sobre a sua função alimentar: todos deveriam saber.