segunda-feira, fevereiro 21, 2005

Todos deveriam saber

Ontem pensava se as pontas do mundo tem algum parentesco, pensamento talvez advindo da classe dos pensamentos que se tem depois de um bom almoço quando, sem pressa, pode-se descansar sem alardes nem prazos. É estranho imaginar que uma vaca tenha um valor aqui no Brasil e outro na Índia, como que abstraindo que cá esse animal é fornecedor de carne e leite, alimentos que compõem nossa dieta, lá é ligado por muitos cultos indianos à uma figura divina e que deve ser respeitada e reverenciada. Temos todos valores diferentes e não precisamos ir à Índia para compreender isso.
Na impressão de uma futura saudade, Priscila e eu fomos ao parque Halfeld tentar comprar a famosa pipoca do Trenzinho da Música Clássica, que fica em frente ao antigo palácio da prefeitura. Trata-se de uma pipoca especial, não qualquer pipocazinha que se faz em casa, pois tem um sabor diferente e um milho especial, é mais leve também, e no fim é mais divertido comer pipocas em parques que em frente à TV. Esqueci-me, entretanto, que domingo é dia de folga do pipoqueiro e ficamos um pouco frustrados, nada de mais, mas enfim, havia uma expectativa. Para não perder a viagem fomos passear um pouco pela rua Halfeld até a praça da Estação e depois na Antônio Carlos e nesse trajeto é que estalou-me de novo a noção dos disparates de valor.
Como de praxe a rua Halfeld estava cheia de ambulantes, mas estranhamente numa quantidade menor do que de costume, havia mesmo um certo ar de tristeza entre eles e tentei não me aprofundar em entender aquilo, mas na sanha de captar aquele ambiente, acabei deparando-me com uma capa de disco de vinil em que estava escrito "A arte de Vinicius de Moraes", evidentemente fui até lá ver o disco. Trata-se de um disco duplo lançado em 1976 que tem canções até então inéditas e declamação de poemas e inclusive da tocante crônica "Pedro, meu filho", é o caso de um disco que foi produzido por Vinicius de Moraes, um dos últimos, por sinal, e diferentemente dos que vieram depois de sua morte, funestos tributos, esse conta com sua sensibilidade de seleção e interpretação integrais.
O vendedor era uma daquelas figuras que parecem saídas de trás das portas com um punhal na mão, os olhos esbugalhados e a boca serrada, taciturno e quase monossilábico, respondeu à primeira pergunta com as palavras: "dez reais". De emenda, adiantou-se para dizer que o disco estava em perfeito estado, sem arranhões ou avarias, sem nenhum problema que pudesse comprometer o seu uso. Evidentemente eu estava calado porque não esperava encontrar aquele disco e tanto mais por aquele preço, já que é um disco raro, tem 29 anos e estava em excepcional estado de concervação. Por alguma razão, (talvez por ter pouco dinheiro na carteira) ainda pelejei por um preço mais baixo sentindo-me o pai de todos os caras-de-pau desse mundo e por fim paguei ao vendedor. Ainda fomos a um bar beber qualquer coisa e depois voltamos quando tava anoitecendo.
Em casa eu olhava para meu "A arte de Vinicius de Moraes" e pensava no prazer que seria ouvir aquilo que estava secretamente oculto nos dois discos pretos imensos. "Há um toca-discos na casa da minha mãe" foi o primeiro pensamento, e depois considerei ainda mais sobre como era um privilégio ter aquele disco, em como alguém poderia ter se desfeito dele, e pior: como alguém poderia vendê-lo por 10 reais. Talvez possam alguns argumentar que é só um vinil velho, mas isso seria insanidade demais e para argumentar isso teria de ser alguém que tem a dieta baseada exclusivamente no consumo de capim. É um disco muito especial e qualquer um deveria saber disso.
É exatamente isso o que os indianos pensam sobre a sacralidade das vacas e que nós pensamos sobre a sua função alimentar: todos deveriam saber.