sexta-feira, janeiro 07, 2005

O melhor do mundo

Tão querida a minha menina. Abraçava-me cheia de estrelinhas no cabelo, com aquele perfume sempre tão sutil que serve bem pra dizer que ela está la.
A cada dois dias ela toma seu banho às 6 da manhã pra ir para o seu plantão de 48hs na residência. Vê menininhos tão lindos queimados, mães explicando que o filho caiu da escada, enfermeiras namorando no almocharifado: entre maços de algodão e seringas descartáveis uns beijos maravilhosos, cheios de paixão.
Cuida dos seus doentinhos como se cuidasse de mim! Olha a evolução de cada um e pergunta se sentem-se bem com aquele sorriso que ilumina o mundo inteiro, com certeza eles melhoram sensivelmente logo depois, tantas vezes funcionou comigo, por que não funcionaria com eles?
Nas olheiras dela de tanta paixão por essa profissão tão cheia de desapego e tão plena de exigências contra a vida particular de seus exercentes, vejo esse tempo todo em que não falamos, acho que meses...
Eu sempre penso nela, como que cumprindo um ritual de abertura de uma cerimônia de fantasia, como que entrando no mundo do fantástico e do absurdo onde a memória prefere a sinuosa certeza de que ela é outra agora e eu também sou outro. Assim eu inverto o mundo inteiro e penso em como o namorado dela consegue corresponder aquele amor todo... inexplicável, sinceramente, gasto horas inteiras pensando na felicidade que esse rapaz tem nas mãos e em como ele provavelmente é só mais um filho de burguês, com seu carro e sua mulher linda e promissora pra exibir... inveja minha? Nem por isso, sei que para amá-la seria preciso uma sensibilidade maior e se ele a tivesse ela teria comentado comigo, fatalmente.
Invariavelmente, lembro-me em como a tristeza dela agora ganhou uma dimensão de angústia em mim. Penso nas horas de solidão no hospital, nos pensamentos vagos sobre seus desejos secretos, no pânico de encarar a tristeza da vida e de saber a verdade. Imagino suas mãos espremendo seus joelhos quando ela suspira e põe pra dentro do peito essa espera sem fim de encontrar um pouquinho de paz que seja, sobrando desavisada perto do banheiro do quarto.
Tão linda a minha amiga. Tem uma beleza tão tranqüila, um riso tão cheio de infância e de romantismo que quase me apaixono por ela.
Naquele céu de baunilha de inverno eu a abracei pela última vez, como entregando nos braços do mundo a amiga por quem tenho tanto carinho, naquele segundo muito da minha esperança foi desossada e partiu com ela.
Nesse exato instante sei que o coração dela bate bem devagar, perdida num banho de 80 minutos, calada frente a um prato de sopa que esfria, inerte na cama a ver o teto, ou sonâmbula nos corredores de casa pedindo água e abrigo!
Quero o melhor do mundo para ela, mas é que ainda não amanheceu completamente. Não há luz suficiente pra ir viver e sorrir lá fora.