segunda-feira, janeiro 10, 2005

Salame cozido com água e sal

Aos 59 anos morreu antes do natal meu vizinho Juarez. Sabendo da notícia apenas há poucos dias, eu rezei um pai nosso pela sua alma e pensei em como deve ter sido traumática a sua partida.
Inquilino do meu pai por 20 anos, eu cresci indo à sua banca de jornais e revistas e comprando ali muito da cultura infantil que eu consumi, gibis principalmente.
Sempre muito discreto, Juarez nunca se casou, era um solteirão convicto que adorava freqüentar prostíbulos e voltar pra casa à pé.
Levando a vida de uma maneira simples e sem preocupações, era comum ouvir dos demais vizinhos: 'o que eu mais queria era uma vida igual a do Juarez' e essa era uma afirmação corrente, ouvia-se pra cima e pra baixo, tornando esse homem quase uma lenda.
Bom bebedor de água-ardente, trazia consigo um violão muito bem afinado e uma voz grave que transformava-se rapaidamente em aguda se a canção lhe pedia. Lembro-me de uma vez que compôs para o partido que venceu as eleições municipais um hino de vitória muito engraçado que obviamente era humilhante para o lado contrário e que caiu no gosto popular virando referência de sua personalidade: "Olha lá Nanando", muito bem tocado por ele não deixava nenhum cidadão indiferente.
Mas numa dessas, no cenário ideal para o fim de um homem como ele, cambaleou e virou os olhos sentado à mesa de um bar, subtamente afligido por um ataque cardíaco. Levado para o hospital, não resistiu, vindo a morrer dessa maneira abrupta. Os vizinhos, inclindo minha mãe, já vinham comentando que ele estava muito vermelho e isso talvez fosse pelo fato de estar com algum problema de saúde que agora sabemos: tinha as artérias entupidas.
Morto num sábado às 10:40hs da noite, coube aos seus vizinhos cuidar dos procedimentos fúnebres e o senhor Cloves Botelho tirou do bolso das calças do defundo a chave de sua casa. Lá chegando, encontrou um ambiente nojento: uma sujeira imensa por todo canto, na cozinha uma única palena com um pedaço de salame cozido com água e sal, no quarto uma única peça de roupa: uma bermuda e nada mais. Aquela visão absurda mostrou muito bem que Juarez vivia mal na sua solidão e a bebida era uma boa amiga contra pensamentos ruins.
Cloves voltou ao hospital com roupas suas e vestiu o cadáver. Os parentes contatados só chegariam 2 horas mais tarde, já que moravam na cidade vizinha.
Naquele velório da sala de necrotério do hospital, ele relatava sua expedição aos amigos e demais vizinhos, inclusive à minha mãe que me reportou a estória. Cloves, incorporando o inconsciente coletivo arrematou olhando para o morto: "e eu que invejava a vida do Juarez!"