quarta-feira, dezembro 29, 2004

Atirando com as duas mãos

Tive um professor na faculdade que era polêmico na mesma medida que respeitado pelo seu conhecimento jurídico.
Retirante nordestino, conseguiu estribar-se no exército, onde foi educado e aprendeu a atirar com as duas mãos, chegando a ser oficial, acho eu que tenente.
Seguindo seu espírito inquieto, fez faculdade de direito, abandonou o quartel, foi promotor de justiça, juiz do trabalho, por fim juiz federal. Na vida acadêmica tirou o mestrado e em seguida o doutorado. Escreveu livros lidos nacionalmente, formou juristas de renome nas suas aulas de direito administrativo, morreu aos 48 anos de câncer no estômago.
A viúva de 38 anos acumula hoje as pensões de professor universitário e juiz federal, algo em torno de R$27 mil reais no bruto.
Frente aos réus e seus alunos, mesmo frente aos advogados e promotores e colegas docentes, uma figura imponente e por vezes arrogante, pálido no caixão era um morto tão impotente quanto qualquer outro.
A fragilidade dessa vida só merece a gana de vivê-la com alguma intensidade e com menos medo. Vamos esquecer as rugas, pois a opção a elas é a morte, vamos ver no dinheiro um meio e não um fim, vamos tentar viver um romance de verdade dessa vez?
Eu sempre peço demais das pessoas!
Mas esse professor não era apenas mais um figurão arrogante, era um idealista de baioneta na mão também.
Por vezes notei meus colegas com lágrimas nos olhos e ele também nas formaturas. Amava secretamente seus alunos acreditando que eles poderiam exprimir generosamente o ideal que a academia tinha rotulado de não-puro ao direito.
Lembro de ter visto uma vez ele referir-se a uma colega minha como muito parecida com a sua filha mais nova e dizendo isso aproximou-se dela rapidamente e retirando o cabelo que lhe caía pela fronte repetia: "você se parece muito com minha filha caçula, querida". Tinha os olhos marejados mas quase ninguém percebeu porque muito astutamente emendou com uma piada, mas eu vi e sabia que isso era porque vivia longe das filhas que eram seu grande amor.
Tínhamos enfim um homem idealista e sentimental na couraça de um truculento juiz e professor de direito, que sofrera por toda vida para ter sua carreira, sua família, seu patrimônio tão dignamente construído.
E morto aos 48 anos por um câncer no estômago.