sexta-feira, dezembro 31, 2004

Às armas, cidadãos

Diametralmente oposto ao que faz sentido, descanso de manhã na beira de uma piscida cheia de licor de menta, apropriamente climatizada aos 20.º celsius. Ao meu lado esquerdo há um imenso chafariz em forma de uma criança ajoelhada com corpo de peixe, segurando um que põe mais licor pra fora da boca e lá na beira calma pardais bebem animadamente e eu me divirto com a dança luxuriosa deles, destacadamente longe de sua natureza.
À frente um precipício sem fim, diante da piscina apenas uns poucos metros, faz chegar a mim uma brisa delicadamente fria, mas sem nenhum excesso. Invade-me o desejo por um mergulho, mas é agradável naufragar na inércia, sem toalhas resta-me o vento para secar meu corpo e essa brisa não dará cabo do serviço.
Deste modo, inertemente deitado na cadeira de veraneio, vendo os passarinhos felizes e o azul do céu que não despenca nunca no precipício, invado as prioridades da ordem do dia: salvar o mundo inteiro da alienação jogando a população mundial na boca convenientemente salivada do fatalismo; juntar os cacos dos corações das meninas apaixonadas; reunir o amor do mundo inteiro em cápsulas e distribuir gratuitamente nas esquinas mais escuras nas nossas lindas metrópoles.
Dia agitado, mas nem por isso menos excitante: vamos revolucionar e depois, um banho de piscina e um novo olhar sobre o precipício: a paz de ter salvado o mundo inteiro há de redimir o recital contínuo e irritante da 'dialética' dentro de mim.
Mas o mundo precisa da dor como eu preciso daqueles olhares cruelmente doces de quem me ama. E não serei eu o homem que privará o mundo da dor.
Privo antes os meus chegados amigos da minha presença e os meus familiares de notícias confiáveis sobre o meu paradeiro e para a segurança social de todos é melhor assim.
Agora, abortada a ordem do dia, volto à cadeira, o sol ainda está fraco. Dentro do meu peito ainda o ar fresco do maior dos suspiros e expiro agora devagar, pensando insanamente em mergulhar, mas falta vento.