quarta-feira, dezembro 15, 2004

Medo

Quando meu irmão Fernando e eu éramos crianças poucos conseguiam notar claramente as nossas diferenças de personalidade, enquanto que era fácil ver as semelhancas, como nós dois éramos orgulhosos, e aqui o motivo de inúmeras brigas homéricas, e ao mesmo tempo amorosos com a família, conforme atestam as testemunhas.
Mesmo num Fernando bem pequenino eu já sabia do traço maior que nos diferenciava: meu irmão era medroso. Tanto assim que nunca gostou de andar a cavalo, prática que eu adoro, ou mesmo teve coragem de aventurar-se além do que é seguro, prática que eu adoto inclusive filosoficamente. Lembro-me de um episódio da infância que ilustra bem: estávamos num domingo à tarde num churrasco em família, no sítio do meu pai junto à cachoeira. Eu adorava explorar todas as partes da cachoeira, todas as quedas e o ápice é entrar no vão das quedas d'água, sim, ficar lá dentro vendo a água cair na frente. O detalhe é que para entrar nesse vão é preciso coragem e apesar de ser maravilhoso, apesar de ser surpreendente, apesar de ser a coisa mais emocionante de se fazer por lá, o Fernando nunca quis ir ao vão da cachoeira. Entrou algumas vezes sim, mas forçado por mim, e quando lá estava maravilhou-se.
Meu irmão querido, único e nem por isso menos amado, mostrou-me bem cedo as conseqüências de se ter medo e elas são terríveis, terríveis mesmo.
O medo é a reação contra o perigo, protege, portanto. Mas digamos que o medo ganhe dimensões maiores que o estritamente necessário para essa proteção instintiva e ganhe ares de comando da personalidade, ou seja, orienta a conduta.
Medo de ousar é a causa de grande parte da tristeza de uma vida sem realizações, da vagueza de poder ser grande mas auto-abortar o sonho por faltar confiança. Daí não vale e o talento tão legítimo perece.
O medo que orienta a conduta é meu inimigo contra a liberdade, senta-se ao meu lado e canta as canções que me intimidam, abre à minha frente o horizonte das piores probabilidades e diz que lá está o meu destino, mas acontece que quem escolhe sou eu e, talvez por natureza, talvez por formação, não dou ouvidos à perdedores.
Como disse Dolores Abarruri, heroína da Guerra Civil Espanhola, inclusive a última guerra por um ideal, "é melhor morrer de pé do que viver de joelhos".