terça-feira, dezembro 07, 2004

A construção do absoluto

Da inesquecível lição de Rossini, meu dileto ex-professor de história, 'o frio da madrugada é amigo, pois como o nosso coração, também ele existe, pulsa e preenche o vazio aparente da noite, mas tudo dorme e lhe é alheio'.
Como esses ventos foram úteis à nossa gloriosa civilização ocidental! Não foi senão nas madrugadas que os grandes poemas desse mundo conheceram o papel, não foi senão nas madrugadas que os apaixonados engendraram seus sonhos poderosos e moveram com eles multidões de milhões de outros sonhos e paixões...
A paixão: doença cruel e continuada. Nenhum raciocínio contaminado de paixão pode ser mesmo confiável... (dizer o óbvio é ridículo, mas necessário). A paixão de estender-se a todos os limites do mundo, como quiseram os romanos, a paixão de libertar a França da opressão do absolutismo, a paixão da fazer a América livre para os americanos, a paixão de oprimir o mundo e moldá-lo ao sonho do pangermanismo, como desastradamente quiseram os nazistas. Paixões que moldaram o mundo inteiro.
Sem paixões estaríamos na savana, comendo carne crua, restos deixados por predadores mais poderosos. Imaginem: nem computador, nem campeonato brasileiro, nem cinema e nem nada em que a pata científica construiu conhecimento e evolução tecnológica.
Sem paixões viveríamos 40 anos apenas e teríamos ao menos 20 filhos, dos quais apenas 1 ou 2 chegaria à idade de reproduzir-se...
Sem paixões as tardes seriam longas e sem maldade poderíamos nos divertir com a nossa ignorância de não saber que iríamos morrer um dia... sem a aganonia de temer o futuro... O futuro era a próxima refeição e ali estava a maior preocupação dos ancestrais. Para nós, basta abrir o armário da cozinha, mas eles gastavam o dia inteiro com aquilo.
Sem paixões nossa debilidade sentimental estaria ainda presa à violência e à satisfação imediata dos desejos, sentimentos animalizados.
Sem paixões seríamos macacos inteligentíssimos... mas ainda somos macacos inteligentíssimos. Morremos, temos desejos e preguiça... Mas fingimos que não: 'você se imortaliza nos seus descendentes'; 'há uma hora pra tudo na vida'; 'o trabalho dignifica e enobrece o homem'; 'há que haver boa disposição para juntos construirmos o país do futuro'.
Não vou demonizar as paixões, não tenho direito de retomar a velha discussão sobre a razão e a paixão. Mas aqui queima em mim a frustação do nosso orgulho ser despropositado.
Continuamos morrendo, apesar das mentiras, desejando, apesar de sermos reprimidos, e labutando para fazer girar a estúpida roda da acumulação, enquanto nossos mais admiráveis talentos ficam submersos ante à luta para ganhar o pão ou ao medo de ir compor o exército industrial de reserva.
Mas o vento da madrugada continua: ainda muitas mocinhas vão se apaixonar por calhordas e se suicidar em seis meses; muitos rapazes sonharão fortunas imensas para não temer e escravizarão famílias de 'trabalhadores' com suas CTPS devidamente assinadas; muitos políticos esquecerão a nobre linhagem que os antecedeu e decidirão mentir covardemente, pois há sempre um degrau a mais na abstrada escada da política; muitos namorados mentirão para estar com outras por não haver confiança e haver oportunidade de se afirmar pra si mesmo.
Entra pela minha janela de madrugada esse vento depois de passar por tantas janelas. Eu docemente inspiro sua prostituta constituição e reconheço nesse minuto perfeito todas as paixões e dores do mundo.