quarta-feira, janeiro 19, 2011

Vem viver a vida, amor




São frias essas manhãs do início do ano, mas na friagem não há maldade e nem bondade, é como é. Segue-se o caminho de todos os dias, que também não prende e nem liberta, é simplesmente nosso e acho bem que se tire proveito da sua beleza simples, onde houver.


Dar de si, meu amigo, requer muito amor. O amor decidido e desinteressado, não como o amor dos gatos e nem como a conveniência das estações da vida, quando o amor é uma brincadeira tola e infantil.


Mas como dar, como amar, se as pessoas nem se conhecem a si próprias? É um absurdo o que anda por aí de gente a ignorar o comando socrático de conhecer a si mesmo. Por vezes, são os mesmos que desprezam a filosofia e riem dos que discutem com seriedade, essa raça da qual pertencem orgulhosamente os políticos de carreira e os magistrados que não se importam com o ideal da Justiça e, uns e outros, a contribuir para a ruína de Portugal e dos portugueses. Falta muito amor, falta muito conhecimento, falta reflexão e falta também uma metáfora para ilustrar a ideia. Então, vamos a isso.


Noutro dia, vi um guia turístico de Nova Iorque a explicar que a cidade não deveria ter como alcunha "big apple" (grande maçã), mas sim "big onion" (grande cebola), já que tinha várias camadas e não poderia ser concebida na superficialidade do Central Park ou dos arranha-céus de Manhattan. É a verdade.


Eu adoro maçãs, e cruas são muito melhores que as cebolas, mas é capaz que a comparação valha também para as pessoas, ao menos as que são interessantes, porque as outras não são nem uma coisa e nem outra, seriam qualquer coisa que desilude quando vê o que tem dentro, como um maracujá com pouca polpa.


Camada por camada, ano a ano, sobrepõem-se ideias e pensamentos de outrora enquanto novos florescem e passam a estabelecer a nova ordem. E assim, na distância do tempo, torna-se algo artificial estender a mão a quem ficou do outro lado da ponte, como que intransponível agora, que liga o aqui e o lá no tempo.


É como andar à beira do rio a imaginar a vida de Miguel Torga. Ainda ontem comemorava-se algum aniversário relativo a ele, não sei dizer se o de nascimento ou do dia que veio morar para Coimbra... Facto é que gosto muito do Miguel Torga e da forma como ele via a vida.


Poeta sereno, de expressões serenas... e que amava o sereno Mondego, que via do seu consultório no Largo da Portagem.


Acho que essas manhãs frias de Janeiro não chateavam o Miguel Torga. É capaz que ele fosse um homem prático para essas fadigas involuntárias da vida e soubesse que elas são também parte dessas camadas novas que vamos ganhando no decorrer da vida, uma vida vivida "sem angústia e sem pressa".

terça-feira, outubro 26, 2010

Hey, you!


Ando um bocado farto dos formatos repetidos, daí penso que é melhor achar que são reinvenções originais e inocentes do que foi feito antes e, por alguma sorte incrível, repetiram-se em condições semelhantes sem ser iguais no todo, já que guardariam algum frescor novo, algum brilho de descobrir por si.

Já há muito tempo ouvi dizer que a praticidade garante-nos paz de espírito, mas em verdade, os práticos são chatos e vão dar sempre ao mesmo: os resultados. Mas isso importa pouco e quem o sabe não tem paciência para explicar aos chatos.

Pensemos, no entanto, num caminho fácil: resultar é alcançar o que se procura, daí fica menos objetivo dizer-se que um resultado é um sucesso específico, já que até no fracasso pode se alcançar um resultado. Ora bem, isso até faz sentido, mas não acho que um bom tecnocrata ficaria feliz com essa perspectiva. Vamos a mais.

Doutra feita, vamos às nossas certezas e ao método socrático (relativo ao filósofo grego, não ao aldrabão de carreira). O que é bom e o que é mau? O que é certo e o que é errado? Aonde se quer chegar? Por que se vai até lá? Acho que cada um responderia de uma maneira diferente a cada uma dessas perguntas e é por isso que os resultados são conformes a nós mesmos e não a nenhum padrão pré-defenido que vá fazer feliz ao estúpido da esquina que vende um creme milagroso a ajudar o êxito das performances.

Nesse mundo que se vai perdendo à massificação do comportamento e da arte, há muita beleza, há sim que eu sei. Lá ainda se encontram os nossos poetas mortos, a pintura viva sob uma tela morta, o teatro grego dos dramas e das comédias da natureza humana e nossa verdadeira grandeza também lá está, homenageada por toda arte. Mas onde estamos nós? Ah, sim, pois é, já quase me esquecia. Estamos a perseguir objetivos...

E por viver assim perdidos, vamos um dia morrer desencontrados de nós mesmos e dos outros e sem nenhuma fatalidade, ser esquecidos.

Mas não é preciso que seja assim. É capaz que a liberdade no coração e no pensamento possa conduzir a uma boa vontade maior do mundo. E assim ele poderia nos oferecer aquilo que a cultura de massa nos incita a arrancar dele.

terça-feira, outubro 12, 2010

Viva o Rei!

...........................Estátua de Dom Pedro IV no Porto

A forma republicana não é ruim, na sua essência, nem os princípios republicanos são ruins. Mas quando falamos dos Estados nacionais, ou seja, dos países que reúnem um só povo, com uma identidade étnica, religiosa e linguística, não acredito que a república seja uma forma de estado melhor que a monarquia.

Antes de mais, porque a monarquia não é oposto da república e dos seus princípios. Na monarquia constitucional o soberano não é monarca, mas sim o povo, a quem o Rei representa. Com mais legitimidade que qualquer presidente, o Rei deve defender os valores nacionais, a sua identidade, o seu destino manifesto. Assim, a monarquia não é anti-republicana, mas sim mais republicana do que a república, uma vez que também abraça o respeito pelos ideais de igualdade entre os homens e da boa gerência dos dinheiros públicos, com a vantagem de não trazer em si a pressa das realizações com fins popularistas ou a endêmica corrupção da república.

Em Portugal e no Brasil instalaram-se repúblicas tenebrosas, assentadas na força bruta e na ignorância do povo, assassinaram um rei e expulsaram um outro que tinha servido o país por 50 anos para que morresse quase abandonado num hotel de Paris.

Nos dois lados do atlântico, a república serviu aos grupos sociais emergentes para apossarem-se do poder do Estado sem ter que dar satisfações ao fiscal real que não permitiria os seus abusos e desmandos. Foi assim que o século XX será sempre lembrado pelas estúpidas ditaduras que forçaram Portugal e o Brasil aos grilhões da obscuridade e da censura.

A forma republicana foi, portanto, um meio eficaz para iludir os espíritos que pediam mudanças mas sem, de facto, promovê-las. No Brasil tivemos o caso exemplar de Rui Barbosa, que chegou a discursar a favor da república, mas que depois de implantada à força e sem participação popular, viu que nada mudaria, pois os problemas do país não estavam no seu monarca, mas sim em questões estruturais que teriam de ser enfrentadas com trabalho e não com um covarde golpe de Estado.

Há poucos dias vimos o deprimente espetáculo que foram as festividades pelos 100 anos da república em Portugal. Mas festejar o que? As ditaduras que vieram a substituir a democracia dos tempos dos reis? A falta de liberdade de expressão que foi implantada para calar os que contestavam os desmandos? A corrupação que premiava os filhos dos chefes dos partidos e os amigos dos poderosos do aparelho estatal? Afinal, a república vem custar ao povo muito mais, incalculavemente mais do que a monarquia, com o ônus acrescido da sua ilegitimidade.

Todo o quadro fica ainda mais triste de se admirar quando recordamos que Portugal é o mais antigo Estado nacional do mundo, fundado sob a coroa de Dom Afonso Henriques, que conquistou essas terras a lutar cara a cara com os mouros invasores.

Assim como Barbosa, um dos mais destacados intelectuais brasileiros de sempre, se retratou e passou a defender a monarquia pelo resto da sua vida, também é hora desta multidão de indiferentes acordar para a realidade e banir de vez essa escumalha republicana cujo único e perene ideal é espoliar o dinheiro dos impostos ao seu próprio bem e dos seus comparsas e parentes.

Abaixo a república!

Viva o Rei!

sexta-feira, agosto 13, 2010

O poeta e eu


No fundo de mim mesmo vive o poeta, e vivi eu até há poucos dias sem o saber ou suspeitar a medida desta realidade.
Embebido no sonho, lá dentro do mundo fantástico que os sentimentos e a razão constroem para nos fazer quem somos, estive com o poeta maior para lhe criticar a arte, na infinita coragem de instrumentalizar a vida para dar passagem à poesia: o oposto do que toda a gente faz. E nesse aproximar da destruição, se calhar, é que existia a sua magnânima grandeza.
Convidou-me depois para almoçar em sua casa, e na intimidade era afinal tímido e precisava de de muito gin (por acaso não me lembro de ver nenhum whiskey) para sorrir e brincar. Eu era ali um estranho e nem compreendi bem por que me haveria de ter feito o convite, mas depois, a pouco e pouco, foi bem vista a razão: mostrava-me ele, o poeta, o caminho meu que já foi o dele e eu então percebi o porquê das decisões e num rompante imenso de lirismo, vi os rostos de toda a gente que por pouco que fosse já me tocara a alma.
O dia amanhecido foi uma identificação das novas certezas, mas da maneira doce que a falta de obrigações ou imposições conhece.
Vi com mais vigor os traços do meu avô materno nos meus próprios, no meu cabelo e no meu olhar e senti fundo as tradições daquela raça que em mim vingou mais que nos outros e que faz lembrar tempos que já vão tão longe e quando era preciso muita coragem, muita força e uma resistência brutal para que a vida não fosse um exercício de submissão que levava à morte.
Já então nenhuma das minhas decisões parecia mais despropositada e nem havia saudades, nem raivas e nem remorços de nada e nem de ninguém. Apenas uma lembrança de mim mesmo sempre mais clara e que eu não posso, mesmo agora, deixar de estranhar de todo.
Seja lá como for, a simplicidade e a timidez do poeta mostraram-me um caminho que sempre tive comigo, mas que nunca tinha tido a audácia de fazer abrir-se diante de mim, mas que está aberto para a frente, para o futuro.
A bênção, Vinicius.

quinta-feira, junho 17, 2010

Olhos nos olhos

Não diria que Deus é vingativo, como muita gente gosta de dizer. Diria que as coisas que fazemos voltam para nós mesmos, as boas e as más. Antes de acreditar que a infinita bondade e o infinito amor que é Deus são responsáveis por essas maçadas da vida, antes vale ver o caminho por onde se anda, especialmente aqueles sítios onde ao invés do sacrifício para o bem comum, foi visado só um interesse pessoal e egoístico, onde ao invés de esperança e fé, deu-se lugar ao oportunismo e a leviandade, onde a humilhação e a opressão impunham perseverança, deu-se lugar a uma desistência fraca e uma retirada em precipitação.

É um longo caminho por onde passamos, a nossa vida. Vejo-o nos gatos de rua que moram aqui em frente de casa. Se de manhã matam-se a miar pelo pequeno almoço trazido pela dona Fernanda, ao meio da tarde, quando vem o sol quente, desaparecem para algum refúgio fresco, suspeito eu, longe dessas paragens. Mas depois que o sol esmorece, voltam mansinhos a ocupar as suas posições de costume. Fazem da vida essa rotina de estar juntos, nem sempre a lamber-se, mas certamente sempre a contar uns com os outros. Um é chefe e dá as ordens. Os outros obedecem ou então levam na cabeça, que é para aprender de uma vez.

Na sua charmosa bestialidade, os gatos em muito mostram o nosso comportamento (com vantagens notáveis, é verdade: a liberdade, a graça, o desprendimento, a sutileza, etc.). De certo que ignoram de todo a existência de Deus e no alto da sua consciência animal, o certo e o errado levam ao limite do convívio social e da sobrevivência na sua sociedade patriarcal. Todos se submetem as ordens do macho dominante e cada um tem uma função nessa sociedade, porque sabem que juntos tem chances melhores e porque são animais sociáveis, também é verdade.

Ser "esperto como os gatos" talvez também passe por aí. Saber que os verdadeiros vencedores são todos "team players", ou seja, não há êxito verdadeiro quando se mira só o próprio umbigo: vão faltar apoios, vão faltar motivos, vão faltar alegrias.

Sintomático de que o homem (e também a mulher, por que não?!) deve voltar-se para fora de si mesmo é esse magnífico evento: o mundial de futebol, ou a Copa do Mundo. Assim como os gatos que protegem-se uns aos outros, uns de alerta enquanto os outros dormem, também a equipa que vai vencer esse torneio contará com jogadores que salvaguardam as costas dos outros. O gato que conquista um belo petisco não pode tê-lo só para si: sabe que a boa nutrição do grupo é que vai lhe garantir boas performances amanhã. Também o avançado que não passa a bola para o companheiro melhor posicionado para marcar vai ter menos hipóteses de ver sua equipa sair vitoriosa.

Assim, o que se passa com os gatos, o que se passa com os futebolistas, passa-se com toda a gente, em todo o lado, da mesma forma. Põe a mente e o coração para fora de ti mesmo e vais ver Deus na plenitude. Não o Deus vingativo e ditador que os pagãos e ateus gostam de pintar, mas o Deus que é amor, caridade e verdade.

Mas se esse discurso filosófico-religioso, com alegorias a gatos e à Copa do Mundo, não te convence, segue o teu caminho reto dentro de ti mesmo, mas saiba que ele conduz a um destino torto.

sexta-feira, maio 28, 2010

Primavera do adeus


Já agora essas árvores cheias de folhas novamente, anunciam o que até aqui se escondia por detrás da primavera bem-vinda... o seu verdadeiro e cruel cariz de nunca mais em Coimbra não pode ser suspeitado antes da Queima das Fitas e da alegria pela volta do tempo de calor depois de tanto frio, mas ele sempre aparece, surpreendendo a todos em uma curva do caminho com um sorriso entredentes a dizer essa triste palavra que é "adeus".

Lembro-me bem das árvores assim, bonitas e tão vivas a encher o corpo da larga avenida Sá da Bandeira, quando conversava despreocupado na esplanada do bar do TAGV com o Celso, completamente inocente de que aquele estupor de vida era também a época do ano em que essas despedidas aconteciam e que depois, no grande frio que há de segui-la, são tão sentidas.

Facto é que já começou a temporada das despedidas. Já pelo meio do próximo mês volta ao Brasil um bom amigo, com quem convivo deste o meu primeiro mês cá nesta terra, e outros devem segui-lo mais à frente, restando sempre menos e agora percebe-se bem isso de não receber de braços tão abertos os que chegam - há no ar essa perspectiva de despedida repentida e o melhor é vê-los passar e sorrir e deixar como está.
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Uma nova (velha) vida espera por eles. Talvez o trabalho, talvez o retorno à universidade de origem, de todo jeito não será mais aqui. Esses que retornaram costumam sempre se lembrar com saudades de Coimbra e da "boa malta" daqui. Bem, eu sou um bocado saudosista para servir de parâmetro, mas é capaz que a recíproca seja verdadeira, ao menos em alguma medida.

Eu não sei, meus amigos, a verdade é que não tenho todas as respostas e nem sei se gostaria de tê-las. Mas duas coisinhas a respeito do assunto eu sei bem e vale deixar aqui para vocês: 1.ª só vá a um aeroporto se tiver de apanhar um avião, não acompanhe ninguém até o aeroporto, despeça-se noutro sítio (ou aprenderá a odiar os aeroportos de uma maneira irracional, embora não injustificada); 2.ª a primavera dos outros povos do mundo pode ser feliz, mas em Coimbra tem mais encanto, se calhar, pelo seu relativo desencanto inesperado de todos os anos.

Mais vale ir à rua e beber uns copos às "almas" dos que estão de partida e desejar-lhes o melhor, se é que isso é possível de desejar a um amigo que se vai.

quinta-feira, maio 20, 2010

Pedra bruta e envergonhada


Como um tesouro, de variedade e conteúdo, esconde-o a todo custo dos outros. Mas por instantes, quando vem aquele meigo e sorrateiro sol matutino, vê-se no jogo de luzes um sorriso e o explendor da beleza. Eis o segredo que traz em si e de que mal suspeita.

A toda gente, ao menos à gente com pudor, faz, por vezes, má figura, no entanto. Não é feio, mas anda por essas ruas no cumprimento de um percurso já gasto, pelas muitas gerações de estudantes antes dele, num triste desfile de fragilidades e maus hábitos...
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Grita e canta pela madrugada quando sobe do Largo da Sé Velha, já bêbado e desorientado, junto dos seus colegas, talvez amigos. Cantam a academia e cantam às gajas que passam... Mas por vezes, quando surge no pensamento um nome de mulher, aquela feição doce, surge-lhe também a lembrança do toque da pele macia dos bracos, e chora, como se o choro guardasse mesmo arrependimento ou servisse para expiar aquele sentimento que não podia de todo definir, ou não queria, mas que sabia bem que não gostava de sentir. E era aí que até as velhas da Alta guardavam os baldes d'água que já estavam prontos para lhe dar um banho de cala-a-boca...

Certos dias do ano, trajado e solene, fazia figura de galo pimpão com os colegas. Rufião de meia-tigela, deixava suas boquinhas às empregadas de mesa e pagava um carioca de 0,35€ com uma nota de 5€ dobrada de comprido entre o indicador e o dedo médio, com um sorriso difícil de descrever mas que passava longe, bem longe de ser inocente. Desfilava uma dignidade que não tinha e aproveitava a pose para pedir dinheiro emprestado e vender porcarias aos turistas.

Após uns 3 finos para refrescar (ou aquecer?) começava a contar suas histórias. Uma caixa de pandora de onde nunca se pudia prever o que iria sair! E os colegas que acompanhavam suas tramóias desde o primeiro ano bem sabiam que era tudo uma grande treta, mas ouviam na mesma, já que o distinto narrador confundia-se e inventava sempre coisas novas. Sabe-se lá como, no entanto, sempre se safava com uma ideia que fazia a malta rir e dar-lhe um tapinha nas costas.

Os profs. não eram tão seus amigos. Abusava da sua paciência, escrevia disparates, ia a orais depois de longas borgas... Até onde sei, já podia ter terminado o curso há pelo menos um semestre, mas não é caso para previsões... Deixem os livros descansadinhos - já se ouviu da sua boca roxa de vinho.

Os pais amam-no, docemente. Lembram-se do menino robusto e intrépido que na sua aldeia era conhecido por imitar lobos à noite, uma mania dele que os vizinhos nunca puderam esquecer e que em cada volta à casa, mesmo hoje, é relembrada com gozo - afinal, alguma desforra.

E é assim que corre a vida a esse rapaz que para mim pouco mais é do que um anónimo, mas que traz em si o segredo e a beleza inarrebatáveis da vida. Se em meio à sua grande confusão e estranheza às formas que lhe pedem a mão encontrasse a porta do mistério, talvez pudesse abri-la e dar numa sala onde a lição valesse, mais ainda que as outras, a sua máxima dedicação: encontraria dentro de si mesmo um sentido que, curiosamente, dá para fora... E, de repente, como uma brutal rajada de vento que muda o rumo de toda uma vida, os seus olhos perderiam o medo e a tristeza, a insegurança e o vazio, e mirar-se-iam na sua verdadeira grandeza.

sexta-feira, abril 16, 2010

À boa ventura

Vinicius de Moraes

Há pouco tempo foi o dia dos meus anos, que transcorreu em paz e em boa companhia. Com muito esforço e muito andar (a fim de reunir ingredientes e utensilhos) foi possível preparar o bolo de coco que em duas das minhas festas de aniversário de menino foi servido aos que tiveram a sorte de lá comparecer e me deixar umas boas prendinhas.

A receita, desaparecida com a confeiteira que tinha elaborado a iguaria de então, foi reconstruída com a memória dos meus cinco anos, a falhar um pequeno detalhe com relação à calda da ameixa (que faz da sobremesa um bolo molhado), mas fez-se festa na mesma pelos meus anos completados. Mas eu sempre fico feliz nessa data pela razão inversa: sempre acredito que vai haver ainda muitos e muitos anos a completar.

Quando se faz aniversário, acho eu, deve-se voltar o pensamento para o futuro, e não para o passado. Os futuros aniversários, os futuros presentes, as futuras surpresas, o futuro que guarda a vida, onde cada dia é diferente e embuído de propósito. Por isso é muito triste que uma pessoa complete anos e não tenha um bolo especial para repartir com os seus... Todo aniversariante tem direito a um bolo à medida do seu sonho.

Lembro-me vivamente (tanto quanto da minha festa infantil com bolo de coco) de estar em casa dos avós no dia dos anos do meu avô materno. Sujeito sério e discreto, é claro que nunca ligou para essas tolices, mas eu decidi que ele devia ter um bolo e fiz lá os possíveis para que quando chegasse a casa abrisse um sorriso de aniversariamente como se deve. E assim foi.

Também cruza o pensamento aquele lindo, doce verso que Vinicius escreveu para sua irmã Lygia nos dia dos anos dela, quando os dois eram ainda meninos, quando a poesia cumpria a função de um presente que o pouco dinheiro não permitia dar:

Com o aumento dessa nova estrela
Para a constelação de tua vida.

Um brinde, meus caros! E com vinho verde, que sabe a futuro. Aos anos a vir, de boa ventura, saúde e confiança nas nossas convicções, e também uma fatia de bolo de coco, que é para não deixar esquecer o sabor da alegria de descobrir o futuro.

terça-feira, março 09, 2010

Os meus tios que se foram

Contam-se poucos meses do passamento do meu tio-avô Domingos Ferreira Rios, homem da indústria, proprietário rural e apreciador da cultura cigana.
Acompanhei eu, e acompanhamos todos nós lá de casa, com pesar mas também com uma solidariedade de amigo o seu momento de descanso, após seus seguidos anos a lutar contra problemas de saúde e visível abatimento com que encarava o porvir.
Morreu na velhice, embora tenha tido a inusitada experiência de ser pai já velho, ele se foi tranquilo quanto ao futuro do seu pequeno Rafael. E tranquilos restamos nós, na fé de que a sua alma encontrou o bom caminho para Deus.
Esse pouco tempo que se conta da morte do do meu tio-avô veio a se encurtar de repente com a tragédia que se abateu sobre nós no fim de semana.
Era tarde de domingo quando, numa curva do caminho (esse tortuoso e surpeendente caminho que é a nossa vida) o meu tio Maximiano despistou-se para encontrar a morte às vésperas do seu 60º. aniversário.
Poderia aqui fazer relembrar inúmeros eventos da minha infância e juventude ligados ao meu tio Max. Poderia encher os vossos corações com esse luto que eu sinto e que em alguma medida tem também a serenidade dele. Mas vou dizer o pouco que significa muito.
Foi um homem bom. Nunca obrou o mal, nunca manipulou e nunca utilizou-se da sua posição para seu benefício próprio. Errou, sim, errou, como todos os homens todos os dias erram, mas fê-lo com o coração comprometido com a certeza de que era o melhor.
Foi amoroso com os seus. Sempre preocupado com a sua família, com os seus irmãos, com os seus pais. Um marido que se dizia sortudo, um pai sempre adorado, um avô apaixonado pelas suas meninas.
Foi um bom tio para mim. Honrou o nosso nome no desempenho das altas funções públicas que durante grande parte da sua vida desempenhou. Deixou-me o exemplo do amor pela coisa pública e da caridade para com os menos favorecidos da nossa terra - uma preocupação que quotidianamente ocupa os meus pensamentos.
Não era um homem velho. Era um homem maduro que se preparava para a velhice. Deixou a nossa família novamente órfã de patriarca 23 anos após a morte do meu avô paterno, sempre presente nas suas palavras e no seu coração.
Um coração integralmente livre, que nasceu livre como o vento e que por toda a vida ditou o caminho trilhado na convicção dos melhores valores que também eu recebi e tenho comigo.
Muitos de vocês que lêem essas linhas nunca estiveram com esse típico e bom "miano", mas acreditem que teria sido um gosto. Nós todos bem o sabemos.
Foi para as mãos de Deus e é preciso ter obediência para aceitar a Sua vontade, na confiança da vida eterna e da ressureição da carne.
Pelo descanso das almas dos meus bons tios, homens de bem, orgulho da nossa raça, eu vos peço uma oração sincera.

quinta-feira, fevereiro 11, 2010

Para o Fernando Carvalho


O tão curto convívio que eu tive com o Fernando Carvalho não é proporcional à minha admiração por ele, ainda hoje.

"O que tem que ser, tem que ser e o que tem que ser tem uma força imensa", eis as palavras dele que hoje eu compreendo melhor, bem melhor... Ou então naquela brincadeira privada ao ver meu ar triste na partida, tão bem sabia ele o que eu sentia, que quis brincar: "A Saudade está aqui!".

Por vezes penso na brutalidade de ter sido expluso da terra dele, ainda adolescente, e vir morar na terra dos pais e dos avós, mas que era até então estranha, penso nas suas inúmeras memórias de Moçambique, no seu sotaque moçambicano, aquele português africano cantado e com as vogais altas e alongadas que eu, pessoalmente e com todo o respeito, acho muito engraçado.

Penso por vezes na coragem de desposar uma moça da sua terra, é capaz que por busca e encontro das suas origens, mas tenho convicção, própria e pelos da casa dele, que o fez de todo coração, e esses longos anos têm provado a certeza da sua escolha, mais que a escolha da sua certeza.

Penso nos apertos daquela juventude adulta, penso na linda filhinha que Deus lhe deu tão cedo na vida, penso nas preocupações, penso, sobretudo, no grande e imenso coração desse bravo homem.

Ainda novo tomou a decisão de emigrar para a Suíça, mas o fez sozinho. Em Portugal ficou a mulher e a sua filha ainda pequena. E é aí que eu fico a tentar ver onde ia o seu pensamento naqueles primeiros anos, que julgo eu devem ter sido mais difíceis, quer pela adaptação ao país estranho e à língua estranha, quer pelas próprias misérias que envolvem o se encaixar numa sociedade estrangeira. Mas seguiu em frente, só na Suíça, mas não só no seu sentimento.

Mais tarde teve mais uma filha, uma alegria e também uma companhia para a mulher e a filha mais velha, mas também mais uma responsabilidade, certamente. Concebida nesse vai-e-vem Suíça-Portugal, Portugal-Suíça...

Dia a dia, mês a mês, ano a ano, uma vida inteira! Quem mais é capaz de sacrificar tanto de si mesmo, de dar da própria carne o comer dos outros que ama, de instrumentalizar-se completamente pela felicidade de outros que nem o convívio pode ter!

São todas ideias demasiado odiosas para um individualista, mas aqui tratamos de uma unidade colectiva que atende pelo nome de família, é bem assim. E por isso mesmo cabe aquele precioso ditado que diz que "quem corre por gosto não cansa".

Mais do que dramatização cruel que poderia ver no Fernando Carvalho um escravo que só umas poucas semanas por ano tem o direito de gozar da felicidade que no resto do ano é privado, como no exercício masoquista que apenas serve para que fique a saber melhor aquilo que não pode ter, trata-se, no entanto, de realizar-se como homem, de fazer-se vivo, de completar-se inteiramente, pois nada há de mais maravilhoso que viver o amor.

E por essa grande e nobilíssima virtude, pelo seu grande desprendimento e fidelidade ao ideal, mas sobretudo por esse imensurável amor, esse amor vencedor e glorioso, eu consigo compreender bem que o Fernando Carvalho é muito feliz e que deveriam haver muitos mais homens como ele, ao invés dessa multidão de infelizes egoístas a bater as cabeças nos postes das ruas.

terça-feira, fevereiro 02, 2010

Vai bugiar, meu menino

Queria que as palavras tivessem sempre o peso certo da expressão interior. Que não se desperdiçasse adjetivos, que não se guardasse uma homenagem justa, que não se calasse a verdade pelo medo, que silenciasse o abuso que vem à fora para nada, a não ser para chatear... Mas talvez essa equação exata não fosse a melhor.
As palavras estão à disposição de todos, os loucos e os sábios. E assim temos de ver nos entrar pelos ouvidos coisas escabrosas, ou ficar à expectativa de um conforto que não é dado.
Acho bem que é nesse espaço entre o excesso e a falta que se encontra o mistério de viver em sociedade.
Criaturas curiosas e bugiadoras que somos, no interior mais secreto, esse ficar sem saber aguça, esse saber o que não interessa até distrái.
Como um longo e doce passeio pela margem do rio, onde as suas serenas águas passam indiferentes à cidade e aos carros, fico à espera de alguma mensagem, de saber como foi e o que esperam do que vai vir na sua viagem até a foz da Figueira, viagem que é tão boa, bem eu sei.
Mas o rio nada diz que ouvidos como os meus possam ouvir. Vão dizer: é a água a passar, tolo! Não... enganam-se muito os que assim pensam. Há ali pormenores, há ali cores, há ali gente e há ali, portanto, história. O rio sabe, melhor que ninguém, como as coisas são. Está ali a passar a séculos imemoriais e mansamente espera e segue, sem nada dizer do que sabe.
Por vezes confunde-me a sua perene inconstância... é sempre novo a cada novo momento, mas no caminho que segue, na margem que toca, nas gentes que banha e de quem arrasta o pensamento, é sempre o mesmo rio.
Mas na generalidade, os mistérios não assumem essa forma fluvial, antes, estão nas pessoas. Muitas poderiam até ver no rio, antes desse mistério que tudo sabe e nada revela, um óbvio que são obrigadas a tolerar, como os portugueses fazem todos os dias em relação ao seu mentiroso Primeiro Ministro. As pessoas preferem outras pessoas, eis uma verdade imutável.
Mas qual o mistério que há em nós? O que guardamos que nos torna interessantes aos outros? E mais, talvez até mais importante, qual o nosso óbvio repetido e aceito que aborrece, que se intromete pelos olhos e ouvidos dos outros e nos faz o cansativo lugar comum?
Se é o rio testemunha silenciosa, sabe bem que a convicção e a fé, em Deus ou mesmo em um ideal, conduzem as vidas das pessoas que realmente importam, como o fluxo do rio conduz os barcos que na superfície se arriscam.
Nada mais somos do que o exercício das nossas bugiações. A externação do que pensamos e sentimos. Com essa forma de influenciar os outros e se deixar influenciar por eles, fazemos o mundo em que vivemos.
Ao contrário do rio, que tudo sabe, mas nada diz, nós, que temos a pretensão de que sabemos, ao menos podemos falar, comunicar, fazer perceber, a dizer, maravilhar ou aborrecer.
E em alguma medida, essa é a vida que se tem para viver.

quinta-feira, janeiro 21, 2010

Os 20 valores de Manuel de Andrade


Nem só de tijolos e livros se faz uma faculdade de direito. Bem o sabe quem estuda ou já estudou em Coimbra.

Cá onde os corredores falam mesmo se vazios, não na voz dos fantasmas a assombrar, mas na história impossível de não notar, há uma reputação a pesar nos ombros desses pobres caloiros que entram para o 1.º ano: honrar essas tradições. Fardo por vezes demasiado pesado, especialmente para os que minguam em talento, possível razão, talvez caiba especular, da grande evasão que acontece: dos 400 caloiros que se matriculam todos os anos, menos de 100 terminam a licenciatura e dois terços ou metade disso seguem para o mestrado e muito menos para o doutoramento.

Essa grande evasão é fundada, dizem alguns, no rigor do curso, onde a obtenção da quantidade mínima de valores (10) para aprovação é em si uma batalha dura, seja qual for a cadeira. Os que terminam o curso com média de 14 valores, mínima para seguir para o mestrado, são uma minoria avalassadora, prémio, não de génios iluminados, mas dos que trabalharam imensamente, com uma carga de organização e de leituras diárias que assustariam qualquer estudante de direito do mundo.

Uma porta, no entanto, resta aberta à beleza: mais que os maquinadores, que reproduzem o conhecimento sem sobre ele refletir, a faculdade de direito deita rosas no caminho dos que se expõe a estarem errados, mas que tentam levar os caminhos do conhecimento jurídico mais à frente, desenvolvendo novas teorias, novas tecnologias capazes gerar paz e justiça social.

É assim que mais de 50 anos após sua morte, Manuel de Andrade, natural de Estarreja, ainda influencia o pensamento dos que por esses corredores andam e nem só.

No convívio social, era um homem de trato simples e muito calmo, dizem os que com ele conviveram, não era dado à discussão leviana... conversava à dois, conciliava, aconselhava, não impunha.

Como professor, acompanhava com atenção o evoluir dos alunos, pois leccionava cadeiras em diferentes anos, provendo-lhes com suas "lições", sempre receoso de publicar seus estudos. Suas ideias, claras e atentas à letra da lei, sempre em busca de uma sua materialização com a participação de um intérprete que lhe confira o positivismo que interessa, penetraram profunda e perenemente no pensamento dos seus alunos, e alguns desses se tornariam mestres dos nossos hodiernos mestres, numa influência espraiada da postura de um professor de direito de Coimbra que ainda hoje se vê plena e consistente.

Talvez por isso tenha levado 12 anos, depois de sua licenciatura, para tirar o doutoramento. Fê-lo, entretanto, com um brilhantismo que já não se pode aspirar igual. Obteve aprovação da tese com 20 valores, a única nota máxima atribuída pela faculdade de direito no século XX. Distinção conferida, ao que parece, por mérito e com justiça.

Feito hoje nome de um dos prémios outorgados anualmente pela faculdade (ao aluno com maior média final de licenciatura), ainda ressoa aos (a dizer, quase todos) que nunca conheceram-no essas façanhas e maneiras. Mais que tudo, surpreende por ter se consagrado na humildade de não querer superar, suplantar, destruir ou implantar. Ensinou o direito e o fez honestamente, sem vaidades maiores e, por isso mesmo, a sua memória ainda muito nos ensina.

sábado, dezembro 05, 2009

Quando se tem amor

Quando se tem amor
A se oferecer em partilha
No dia da grande viagem
Que é o nosso grande amor

Quando se tem amor
Um amor, tu e eu
Para morrer de alegria
A cada hora e a cada dia

Quando se tem amor
Para viver nossas promessas
Sem nenhuma outra riqueza
A não ser a de acreditar sempre

Quando se tem amor
Para enfeitar com maravilhas
E cobrir com o sol
A feiura da miséria

Quando só se tem amor
Como única razão
Como única canção
E única saída

Quando se tem amor
Para vestir o amanhecer
Pobres e bandidos
Com casacos de veludo

Quando se tem amor
Para se unir em oração
A favor dos males desta terra
Como um simples trovador

Quando se tem amor
Para entregar a essa gente
Que vai à luta
Em busca de luz

Quando se tem amor
Para traçar um caminho
E forçar o destino
Em cada encruzilhada

Quando se tem amor
Para falar aos canhões
E bastasse uma canção
Para convencer os tambores

Só então, quando não tivermos mais nada
A não ser esta força que é o amor
Teremos na palma de nossas mãos
Minha amiga, o mundo inteiro!


Jacques Brel

quinta-feira, novembro 19, 2009

A nossa casa


Por vezes lembro-me daquela singela crónica de Vinicius de Moraes para o seu filho pequenino, a sofrer com febre. Ficou talhada à memória a imagem do pai impotente, vergado sob o berço, a rezar de aflição, com o coração a arder de paixão tanto quanto a carne do bebé. Assim é o amor.

É curioso como o nosso mundo vive a explorar sempre mais a ideia do amor, da sua transcendência, do seu conteúdo de caridade, da sua palavra de carinho, do seu colo morno, da sua natureza de ser lar, milhares de adereços, todo um magnífico conjunto de esforços a orbitar esse astro, e mesmo assim assombra a quantidade de gente que passa a vida sem tocar-lhe, sem ter nada dele, mais importante (e talvez por essa razão): sem se dar conta que está em tudo e que se manifesta em tudo, basta querer dar de si, basta querer ir para além de si que o amor virá ao seu encontro como o sorriso que nos acende a alma.

Vivemos rodeados pela ideia do amor, mas muitos há que por mais que queiram sobra-lhes alcançar apenas uma superfície fina e fria. Que triste paradoxo. É como viver cercado de ouro, diamantes e jóias caras numa ilha deserta. É a impotência fundamental de viver.


Amo-te como amigo e como amante

Numa sempre diversa realidade.

Amo-te afim, de um calmo amor prestante

E te amo além, presente na saudade.


Amo-te, enfim, com grande liberdade

Dentro da eternidade e a cada instante.


Eis os seis versos do soneto do amor total que, no meu modo de ver, buscam mais precisamente a essência desse "abandono desordenado", essa caridade infinita que é o amor.

Em honra a essa bela ideia, essa faceta do multi-explorado sentimento amoroso, umas linhas a mais para contornar seu longo, árdo e dourado caminho.

O amor vive, tal como nós, as plantas e os animais, e da mesma forma se alimenta, cresce, reproduz-se. É um ser abstrado com necessidades concretas. Uma vez instalado legitimamente, uma vez confrontado com o seu dono, nunca mais desiste. Persiste. Eis a face mais honrada do amor. Continua. Levanta-se às injustiças, às porcarias da vida, revolta-se, luta. É sublime, mas não por um desejo de reconhecimento ou fortuna, impulsos que podem guiar-nos na vida profissional, antes o-é por instinto de que o outro faz parte desse que ama. Há aqui uma união de facto, no sentido mais poético do termo.

Disso vê-se facilmente que o sofrimento de um é o do outro, e a alegria de um é a do outro também. E aqui um dado curioso, nada mais é preciso para que isso se passe que a mera função da pessoa amada existir. Não se exige compromissos assinados em cartório, anéis, fotografias, telefonemas, cartas... Basta existir, pois assim no peito existirá também, qual a chama da vida que em nós arde por todos os instantes, esse amor que quer bem, esse amor que é a miséria repartida e que faz de ambos menos pobres, esse grande elemento de conforto a todas as mazelas que se nos impõe a vida.

Antes do mundo das maravilhas ou da felicidade, o mundo da fé, da caridade, do encantamento nessa doce pessoa que encontramos pelo caminho e que nos leva adiante a cada dia na simples condição de existir. Eis o amor que há no mundo.

terça-feira, novembro 10, 2009

Feliz aniversário

É uma loja que fica em frente ao Arco de Almedina, portal que sustenta a última das sete torres erguidas por Afonso Henriques para proteger a citadela da Alta de Coimbra.
O emblemático passado daquela zona não comunica muito mais ao comércio, anestesiado pelas grandes superfícies, mas ainda muito preguiçoso para reagir. Logo serão os próximos a pedir auxílios do Estado por terem sido "devorados pela crise".
Voltando ao sítio em questão. Fica em frente ao Arco de Almedina. É uma loja de peças em couro, mas não estamos a falar de selas de cavalo ou tapetes de pele de tigre, mas sim do mais fino couro para botas, bolsas e casacos.
É tanto couro junto que o cheiro distinto remeteu pra uma outra linda loja, noutras paragens, mas igualmente impressionante, onde me tinham mandado escolher o casaco que quisesse. Fora então o dia dos meus anos.
Por tantos anos tive aquele casaco sobre os ombros como que a vestir um comprometimento com um futuro que hoje se faz presente e dele sobra essa saudade maio sem pai nem mãe. Sem saber bem a que se refere, ele existe, como um enfeite no meio da sala que faz alguma boa figura, embora não comunique nenhuma ideia ou lembrança, não signifique muita coisa mais.
Comprei um novo casaco, feito na Índia, espero eu que não por crianças famintas, e com um toque macio à sua pele de ovelha, sendo assim mais confortável que o anterior e mais leve. Sim, mais leve. Quando a vida nos deita à frente o mais escabroso dos problemas, a mais espinhosa das situações, é a hora de ter a serenidade necessária para saber o que fazer e ter muito peso nos ombros não ajuda muito!
Antes como agora, o nariz aponta pra frente, sem medos ou receios de se comprometer e fazer desse grande palco de loucos um exercício útil para alguém mais que eu mesmo na satisfação dos meus caprichos particulares, bravura de ver no horizonte uma linha a desaparecer, sem montanhas com o dedo em riste e sem o peso meu velho casaco de couro a fazer pender para frente.

sexta-feira, outubro 30, 2009

C'est bien loin tout ça

Enquanto os jornais de Coimbra criticam o cortejo da latada desse ano pela falta de consistência, perdendo folhas de papel com esses apontamentos ingratos, soube a mim, como a muitos outros, se calhar, um gosto de nostalgia demasiado forte para qualquer observação agressiva.
Já não tive ao meu lado os meus colegas tão queridos, cuja ausência nesse ano ressona tão alto nos meus ouvidos e salta para cima dos meus olhos em momentos como esse.
Daquela vez no ano passado tínhamos corrido as ruas com um grupo de estudantes do segundo ano do curso de direito para arranjar-lhes uns nabos para seus caloiros. Logo passadas umas horas, éramos já nós os que trincavam o legume. Como um rio de carrinhos de supermercado, caloiros de meias-calça rasgadas e sutiens e doutores desbatinados, fomos chegando à baixa para, por fim, dar o banho do baptismo aos novos estudantes, passavam a ser de cá de Coimbra então, se calhar também nós passamos a ser.
Embora houvesse em tudo semelhança, e talvez, é possível, alguma superioridade ao desfile anterior, já não pareceu tão engraçado. A mim faltou-lhe aquela despreocupação para me entreter e sorrir, já agora há tanto por fazer!
De todo jeito o meu coração foi muito alegre nos instantes que lá estive, do que sem nenhum exagero é o meu dia favorito em Coimbra em todo o ano, o do cortejo da latada. E isso explico pelo seguinte: já não há mais eventos como esse, em que o que importa mesmo é a amizade, a integração dos mais velhos e dos mais novos, desprovido de interesse económico. Os concertos no recinto (a preços de 12€ no fim de semana apenas para entrar) infelizmente converteram-se na forma de a Associação Académica de Coimbra fazer bons contratos com as marcas de cerveja e com os que querem lá ter uma lanchonete, para além dos patrocínios dos media e de empresas. Muito há que se dizer desses contratos, tanto nessa altura da latada quanto na da queima das fitas!
De tudo em tudo, o cortejo da latada permanece aquela coisa simples e feita em casa, sem grandes pretensões, embora extremamente bonito e sincero, pleno de alegria e movido cidade abaixo, rumo ao Mondego, pelo coração uníssono de todos os estudantes.

quarta-feira, outubro 14, 2009

Devagar para não faltar amor

Em meio às confusões do início do ano académico, contribuiu para o convívio dos colegas do ano passado a conferência sobre a suprema corte de Israel. Interessante não seria o termo. Digamos que a conferência em si foi informativa e que ri uma ou duas vezes do sotaque do palestrante, magistrado dessa corte.
Mais a mais, aquilo era uma boa centena e meia de alunos da licenciatura, meio sem perceber aquele inglês internacional, meio distraídos em olhar uns pros outros e ninguém de facto muito interessado na imparcialidade da corte maior do estado judeu. Por acaso não vi lá o Francisco, a quem a palestra teria interessado para além do aspecto puramente académico, digamos.
Uns lá, a se fazerem de bravos, levantavam grandes argumentos sobre o tratamento isonómico de todos os cidadãos israelenses, judeus ou não, outros a baterem-se pelo sagrado direito de defesa do estado judeu para justificar acções abusivas contra uma população palestina desarmada e miserável... Se algum dia fechei fileiras com esses, já não é mais assim, não vou mais por esse caminho. É tolice.
Não digo que seja tolice defender uma ideia com ardor, bater-se por ela, querer vê-la ganhar corpo nos corações e mentes dos outros. Se for um propósito digno e justo, ora que belo sentido para se dar à vida! Muito melhor do que viver de maneira leviana e consumista, ao capricho das aparências e dos modelos de carros.
O que acho que não cabe bem é levantar-se para ocupar o silêncio com a voz no sentido de querer ganhar uma atenção fácil e desmerecida... Nesses empenhos, nenhum proveito é colhido pelo ouvinte. Talvez iludido por alguma bela palavra, algum artifício de linguagem, deixa-se levar pelos primeiros minutos, vai confiando por algum desejo secreto de satisfazer a curiosidade de que aquilo faz sentido ou vai dar a algum lado. Não, nem por isso. As pessoas apenas cometem esses crimes contra o silêncio por amor a si mesmas, querem atenção, querem ser notadas, querem os elogios, os olhares, a confirmação de que sua existência tem propósito e sentido. Que débeis criaturas somos nós quando nos deixamos levar pelos valores errados!
Já agora é melhor ir devagar. Ouvir e calar. Não por medo acovardado em levantar a voz, mas simplesmente porque não vale a pena dar combate à bravata e à estupidez. Ambas arruinam-se no seu triste labirinto de véus de vaidade, cansam-se uma da outra e apunhalam-se mutuamente em traição.
Confio, assim, que um caminho de discrição e pouco riso (quando possível, pois é muito difícil) reserva mais doçura, mais proveito para o aprendizado e, certamente, amor para não faltar nunca a ninguém que o mereça.

quarta-feira, outubro 07, 2009

Fim da terra

Como um lento reflexo a se compor sobre a superfície do mar, o dulcíssimo marejar fez vir uma sensação de sentido e de receio que esmiuçava-se no calor.
Desde então - que grande sorriso maroto! - o verão foi doce e pleno.
A visita à Galiza, especialmente ao cabo Finisterra, foi apenas a precursora das indizíveis aventuras desta estação dos suores e das noites curtas...
Umas tantas músicas dos anos 80, bem lamechas, para o fim de tarde a voltar pra casa. Quantas outras passagens não recordam o mesmo sincero beijo? O tempo corre mais depressa desde que se decide pela vida...
Mas agora, sobre a secretária já cobram atenção umas poucas notas que remetem a telefonemas e compromissos para essas primeiras semanas do outono. Logo avoluma-se o trabalho, enche-se os dias com horizontes outros e pensamentos diferentes, preocupações novas. Um mesmo pulsar no coração, no entanto, alimenta-se de uma força destemida que parece sempre tão legítima que merece sempre um sorriso para si.
Acarinhada gema, nas minhas mãos indefesa e contente, que grande beleza nasce a cada seu sorriso.
E assim também eu nasço de novo a cada dia, estranhamente mais jovem e mais bonito, algo envergonhado por ter a si nesse precioso sítio, talvez, como num contínuo verão, fértil e robusto.
Nada mais afortunado que ter um coração puro.

segunda-feira, setembro 28, 2009

Aos bocadinhos e com muito jeito

O que decidiram os portugueses nas eleições legislativas de 2009? Talvez a ideia de um país forte e com um governo voltado para as necessidades de todos tenha passado pela cabeça de alguns, mas o mais provável é que o sorriso, a boa disposição de espírito e a notável capacidade combativa do primeiro ministro tenham sido os responsáveis por dar ao seu partido mais um êxito.
Ganha Portugal? Não me parece. Antes, ganham os que, felizes em se alimentar das migalhas da mesa do primeiro ministro, vão ter o que comer por mais 4 anos, subsistência que talvez seu talento não possa suprir. Como o resto do país, os entusiastas militantes do Partido Socialista parecem acreditar que José Sócrates é um homem sério e honesto nas suas promessas. Assim, sonhando com um futuro de largas expensas e privilégios comerciais às custas do tesouro público, continuam a adornar as fotos da vitória, essencialmente, as jovens e atraentes militantes que circundavam já o primeiro ministro nas fotos da campanha.
As eleições provaram também que os portugueses não gostam de atalhos mal iluminados e com más infraestruturas. Provar pela primeira vez tem de ser feito com cuidado e envolvendo o mínimo de risco.
Foi deste modo que o CDS/PP e o Bloco de Esquerda elevaram muito substancialmente suas participações no número de deputados da Assembleia da República, sem ameaçar, no entanto, a supremacia do PS e do PSD.
Aos emergentes, o eleitor disse: "vamos ver o que vocês fazem com esse bocadinho a mais. Se forem mesmo capazes, ser-lhes-á dado mais um bocadinho." Assim como é muito incorrecto achar que o PS e o PSD têm lugar incontestável no cenário político, é igualmente errado achar que mudanças bruscas são possíveis e, num certo sentido, é bom que seja assim, pois a estabilidade é que confere sólida legitimidade.
Mesmo que se diga que a percentagem de votos de forças políticas como o CDU decresceram, o grande perdedor foi, surpreendentemente, o vencedor... O PS que até agora detem algo como 120 lugares para deputado na Assembleia, passará a ter 96 e passa a depender de alianças com outros partidos para aprovar projectos de seu interesse. Afinal, a arrogância da maioria absoluta deste partido mostrou aos portugueses que absolutismo nenhum é positivo e assim, a democracia portuguesa, aos bocadinhos e com muito cuidadinho, já agora vai poder respirar.

terça-feira, agosto 18, 2009

O outro eu

Existe um outro homem que também vive sob a minha pele. Há muito não ouvia falar dele. Hoje lembrei-me bem das suas feições e modos, já que estivemos a limar nossos pontos de vista, outrora tão próximos.
Mora ainda em Inglaterra, ao que parece. Conserva, magicamente, uns lindos olhos cinzentos, um peito aceso de amor incondicional e muitíssima força vital. É um touro, um burro desses que arrastam muitas vezes o próprio peso... e sorri, sorri com confiança. Quem corre por gosto não cansa. Mas é tão bruto, Santo Cristo, tão bruto é esse homem! Come com o garfo à mão direita e a faca à esquerda, tem olhares ora leves, ora pendulares, ora incrivelmente possessivos! Como é engraçado!
Nessa tão longa tarde de verão, participei a ele alguma poesia e acho que ele percebeu, sem concordar, o quão breve será sua vida (quase tanto quanto a minha) e que nesse atmo que dura pouco demais para lembranças torpes, confidenciou seu grande, grande amor, não na forma de uma declaração ou de um nome de mulher... mas na forma de seus actos, actos verdadeiramente grandiosos. Pudessem todos os homens perceber a grandeza na face desse homem, quanta dignidade a sua, acho que se envergonhariam todos da vida que levam e dos deuses que elegeram para si.
É um encanto o seu sorriso. Traz em si tanta firmeza e actitude que o pragmatismo que sempre me fez orgulhoso pode aprender hoje uma bela lição. Contou-me das suas tarefas quotidianas, das coisas simples de onde consegue retirar alguma beleza, das sutilezas de ser esquecido por todos e mesmo assim suportar o não poder esquecer e eu lhe perguntei insistentemente como. Mas como? Diz-lá, como?
"Porque também nisso há sentido. Porque foi o que passou e me deixou os olhos marejados, primeiro de uma forma, depois de outra, que me fez esse um no mundo, independentemente dos outros que ignoram os meus propósitos e fazem pouco dos meus ideais. Lembro-me de tudo sim, de tudo que me fez melhor, de tudo com que serviu de lição, pois se não sou choramingas, menos ainda sou burro." Com a mão a segurar o queixo, olhei malandramente os seus lábios a oscilar, mas reconheci-lhe o modo muito particular de ver as coisas.
Comentou ainda sobre o tempo, a temperatura da água do mar no norte, o governo do PS (sem muito entusiasmo), e despediu-se assim que esvaziou seu copo.
Era cedo para ir, pensei em dizer-lhe. Mas homens assim não são comandados pelas sugestões dos outros, seguem rectos, como as setas lançadas, o seu destino e cumprem-no.

sábado, julho 25, 2009

Palavras de sabedoria

Parte, e tu verás


Parte, e tu verás
Como as coisas que eram, não são mais
E o amor dos que te esperam
Parece ter ficado para trás
E tudo o que te deram
Se desfaz.

Parte, e tu verás
Como se quedam mudos os que ficam
Como se petrificam
Os adeuses que ficaram a te acenar no cais
E como momentos que passaram apenas
Perecem tempos imemoriais.

Parte, e tu verás
Como o que era real, resta impreciso
Como é preciso ir por onde vais
Com razão, sem razão, como é preciso
Que andes por onde estás.

Parte, e tu verás
Como insensivelmente esquecerás
Como a matéria de que é feito o tempo
Se esgarça, se dilui, se liquefaz
E qualquer novo sentimento
Te compraz

Repara como um novo sofrimento
Te dá paz
Repara como vem o esquecimento
E como o justificas
E como mentes insensivelmente
Porque és, porque estás

Ah, eterno limite do presente
Ah, corpo, cárcere, onde faz
0 amor que parte e sente
Saudade, e tenta, mas
Para viver, subitamente, mente
Que já não sabe mais
Vida, o presente; morte, o ausente –
Parte, e tu verás...

V. de M.


1961

in Poesia completa e prosa: "Poesias coligidas"







O coração não deve carregar consigo nenhum peso, não deve se deixar prender pelo que já passou, não se deve deixar envelhecer.
Uma vez o então presidente de um grande grupo de comunicação, em entrevista por ocasião de seus 99 anos ou algo do tipo, fez uma declaração que não pude nunca esquecer. O entrevistador perguntou o quanto ele amava a sua mulher, com quem era casado há pouco mais de um ano e o que sentia em relação aos outros amores que tinham passado. "Nunca houve nenhuma outra antes dela". É evidente que o que ele queria dizer é que o passado não significava nada, que ele não lhe ligava nenhuma, a primeira e a última namorada era a sua esposa, ela merecia e esperava essa dedicação.
É capaz que seja bem assim. Levar do passado, talvez os conhecimentos, nada mais que isso. Nem falsos cartões de natal, ou votos de feliz aniversário, aos que deixaram o convívio, tudo parece um pouco falso e sem muito sentido. Será que é sempre assim? Há amigos que perseveram no afecto e na fé? É bom que haja e é uma fortuna encontrá-los, mas a vida não é uma avenida de delícias, ao contrário, parece mais uma via rápida em que escolhas pragmáticas são precisas sempre mais rapidamente. Pobres dos amigos! Que interminável gradação de prioridades faz com que sejam empurrados em um vão de estupidez e auto-satisfação!
Sem pesares maiores, cabe o que se percebeu do brilho dos olhos deles, sempre a brilhar nos nossos de alguma forma, sem entretanto perpetuar sua ausência, sem desejá-los, sem citá-los, sem trazê-los para um convívio que não é parte deles. Passa-se algo como um velório sentimental, um sepultamento dessas esperanças e nem as saudades parecem verdadeiramente justas.
Mas os braços não lhes podem estar fechados, isso nunca. Há para eles um remanso de harmonia e bem-querer, um sorriso pronto e confiante, um desmemoriado gostar da presença, reencontrada na alegria simples do acaso que foi o primeiro encontro.
Deixar ir. Deixar ir. Para onde? Quem sabe... para outro sítio, de certeza, esse desconhecido lá onde os espectros não têm peso e nem importância e o novo senta-se à mesa no seu lugar de direito, sem ser perturbado ou calado por qualquer calafrio nosso.

terça-feira, julho 07, 2009

Depois de dois anos

Como se fossem meus os olhos de Verlaine no fim de sua vida, eu vi tudo isso de novo, com o coração esvaziado e a cabeça cheia de labirintos infantis mas difíceis de vencer.
Talvez tenha crescido ao meu lado uma criança madura e prudente que tem um sorriso contido e gosta de dar muitas ordens. Uma criança que não chora nunca e que nunca olha para trás.
Como o velho e amplíssimo salão do Instituto Granbery em Juiz de Fora, o pensamento mantém a sua elegância como que à espera. Mesmo tendo por princípio a acção, por vezes é preciso convir da natureza estática de certas coisas e deixar estar.
As ruas dos meus anos mais verdes perderam o encanto com a minha ausência. Ressentiram-se como o amor que os meus amigos me tinham. Já não sabiam meu nome, olharam-me como se fora um estranho e não como seu filho. Assim, uma brisa muito fria lentamente levou consigo o verde da borda dos meus olhos e eu fiquei fixamente a mirar a cidade, sem saber bem para que lado ir.
Como um trovão dos céus (embora o toque fosse amistoso e simpático, como o é), o telemóvel trouxe-me de volta à realidade. "Sim, sim, já estou cá, está tudo bem, sim, sim, obrigado, adeus." Que conversa estúpida, fez-me lembrar o propósito de tudo isso. De volta aos afazeres.
Seguiu à noite uma manhã de chuva. Detestável mais aos mais impressionáveis que a mim, propriamente, tive que adoptar a consciência inglesa de que um belo dia depende de nós mesmos unicamente e não da presença do sol.
De volta às galerias onde o negócio dos alfarrabes ainda é próspero e pujante, se calhar porque é alimentado pelo comércio de livros didáticos: umas mães a se desfazerem do inútil outras a tentar uma pechincha e os alfarrabistas a fazer algum dinheiro na intermediação. Também compram (depois de escolher com cuidado o que é conveniente) bibliotecas herdadas e talvez aqui esteja o grande interesse desses sítios: nunca se sabe o que se pode encontrar e nem em que estado de conservação!
Os alfarrabistas lembraram-se mais da minha ausência do que do meu nome. Tinham lá qualquer coisa boa, uma pequena pilha de livros de uma antiga colecção, embora, como é costume, não soubessem disso.
Da rua veio uma voz conhecida que me deixou cair aquilo. Fui correndo ver. A minha prima com uma colega, estava lá como a tinha deixado o meu último abraço. Sorriu, sorriu imensamente. Perguntou porque não lhe tinha ligado, fez que se aborrecia, sorriu de novo. Foi a minha taça de temperança, como fora noutros tempos, embora como então, não lhe tenha dito nada, nem do bem e nem do mal.
Fui dormir, como sempre, antes da criança vigilante ao meu lado. Olhava-me com uma expressão severa que já me tinha habituado. O seu silêncio calou-me um bocadinho mais e meus pensamentos não foram muito além. Ela que esteve nos sítios onde o meu coração floresceu e foi pleno, ela que viu quem me tinha amor e estima, ela que fez de uns e de outros pouco ou nada, também dormia sob a mesma lua pouco depois, sem pensamentos, sem sonhos, sem cócegas e sem amor verdadeiro.

domingo, maio 24, 2009

A Travessa da Esperança

Não vás tão docilmente

Não vás tão docilmente nesta noite linda:
Que a velhice arda e brade ao término do dia;
Clama, clama contra o apagar da luz que finda.

Embora o sábio entenda que a treva é bem vinda
Quando a palavra já perdeu toda a magia,
Não vai tão docilmente nessa noite linda.

O justo, à última onda, ao entrever, ainda,
Seus débeis dons dançando ao verde da baía,
Clama, clama contra o apagar da luz que finda.

O louco que, a sorrir, sofreia o sol e brinda,
Sem saber que o feriu com a sua ousadia,
Não vai tão docilmente nessa noite linda.

O grave, quase cego, ao vislumbrar o fim da
Aurora astral que o seu olhar incendearia,
Clama, clama contra o apagar da luz que finda.

Assim, meu pai, do alto que nos deslinda,
Me abençoa ou maldiz. Rogo-te todavia:
Não vás tão docilmente nessa noite linda,
Clama, clama contra o apagar da luz que finda.



Dylan Thomas

É uma travessa curta e estreita. Não chegou em tamanho e proporções para ser chamada rua, não era tão estreita para ser beco, é uma travessa, mas não é uma travessa qualquer: falamos da travessa da esperança.
Estimosa via junto ao Largo Rangel de Sampaio, localizada aqui na boa e mui antiga freguesia da Sé Nova, lar dos estudantes e dos senhores mais velhos e ponto de encontro para a conversa matutina da dona Fernanda e da dona Afonsa e das empregadas da residência universitária.
Escolho a ela e não a outras mais famosas e prestigiadas vias para as minhas inscurções à Baixa. Prefiro essa humildade cantada e discreta quando, de frente para a minha janela, dá-me a tranquilidade de sua (talvez) involuntária expressão poética.
É ali que espreito, todas as manhãs, o sol chegar primeiro e iluminar a bela roseira do jardim da casa ao lado enquanto que pela rua e sobre os carros os gatos mais bonitos de Coimbra estiram-se e numa divina paz de consciência aquecem-se aos raios meigos da manhã nova. Em volta, um mundo de desassossego parece não se dar conta de tanta fortuna, de tanto mérito, de tanta poesia.
Um grito de pavor, um amor verdadeiro falhado, um bilhete arrasador, um constrangimento, um abuso, um sem número de tragédias... Um cortejo de carnaval, um passeio de domingo, um abraço de reencontro, um sorriso amigo no lado oposto, um sem número de glórias... Tanto há na vida! Quanta coisa por fazer, quanto por viver, quanto por atravessar!
Na perseverança de um dia poder me aquecer de manhã como fazem aqueles gatos, continuo sempre a optar pela Travessa da Esperança.

quarta-feira, maio 06, 2009

A redenção pelo amor

Saiu de casa após o jantar sem o casaco, era uma noitinha quente como essas que vamos tendo agora na primavera, o que contribuia para ter o pensamento leve. Nas suas roupas um cheiro forte de alecrim, na pele um frescor de menta, aroma seu que a brisa docemente carregava consigo.
A essa imagem da boa composição de seu aspecto, à doçura de seus gestos e simplicidade das palavras, contrastava o que trazia dentro de si e que não se lia senão num fugaz fixar dos olhos vez por outra. Tentavam ver para além da vista que havia diante de si, tentavam alcançá-la na incorruptível paisagem dos seus sonhos, em que seu grande sorriso de bonança iluminava e aquecia como o próprio sol, o sol de sua vida.
As lembranças desses e doutros gestos assaltavam-no, no descuido de qualquer pensamento inocente era levado a cabo para ouvir a voz a dizer a certeza e o carinho, estava de novo presente para testemunhar a paisagem plena daquela presença, na atmosfera à sua volta o ar novamente vibrava com aquele riso, a mesma curiosa combinação de elementos que orbitava a mulher que como nenhuma outra percorreu os caminhos sinuosos que levavam ao seu coração.
Esperavam-no na tasca, seu copo já estava cheio e os abraços dos amigos ansiosamente à sua espera. Sua vida vinha tornando para caminhos demasiado previsíveis e aquela noite parecia como todas as outras em que negava a si mesmo: estéril e maçante, tudo aquilo a que diligentemente adimplia na vida, todos os seus dedicados esforços de êxito, suas noites longas de trabalho, nada daquilo tinha brilho, nada comunicava-lhe valor. Resignado, aceitava e seguia, sempre seguia em frente, não por gostar do que poderia o futuro trazer-lhe, simplesmente havia bons motivos maus, como o orgulho e a teimosia. Alguma coisa lhe provocara um impulso de revolta, entretanto.
Naquela noite depois de deixar a casa, sem que nenhuma estrela tivesse despencado do céu, sem que tivesse ganhado a lotaria, sem que nada de especial tivesse provocado o resultado, encontrava-se completamente convicto de sua condição: amaria.
Subitamente, seu coração ardeu à intensidade do sonho e lhe soube bem ter a face quente pela emoção e então quis que ardesse até a própria cinza, à grandeza de ser redimido pelo amor que tinha em si, violado e domado, naquela noite, exaltado.
Olhou a lua apaixonadamente e mandou-lhe um beijo com as mãos e disse para si mesmo o nome da mulher que amava e sentiu sobre o seu rosto o aproximar do seu rosto, o toque das suas mãos, a completude do mundo e do sentido de tudo que havia no seu abraço.
À condição do segredo e do destino, continuou resoluto o percurso. Ao chegar à tasca ouviu seu nome ser gritado, em seguida os copos ao alto: soube então que estava para sempre redimido.

terça-feira, abril 21, 2009

O mais profundo desejo

Ai de quem gritar outro nome! Não há, meus amigos, não há desejo nenhum maior do que o de ser livre. Podem tirar do homem os seus bens, o seu conforto e até o futebol aos domingos, mas é sempre demasiado cruel retirar-lhe a capacidade de decidir por si e assim, por ele mesmo, definir o seu destino, a sua fortuna, pelas suas próprias escolhas.
O amor à liberdade tem subido às cabeças e as vidas de milhões de jovens foram sacrificadas nas guerras do século passado (e de tantos séculos antes...) em defesa desse ideal.
Hoje é o dia de Tiradentes, o meu herói. Um homem que de seu, além dos instrumentos de dentista e de umas poucas mudas de roupa, tinha o ideal da liberdade a arder a cada respiração sua. Queria-a para si, mas também a queria para todos os outros e, principalmente para sua pátria. Traído por duas vezes, preso e quando do seu julgamento, quando confrontado com a possibilidade de trocar uma sentença de morte por uma de degredo no caso de negar a sua fé na independência do Brasil e jurar fidelidade à D. Maria I, preferiu sacrificar a própria vida do que negar aquilo que lhe dava mais sentido. Fê-lo honradamente, com a sua dignidade revolucionária que tantos outros contagiou mas que esses não partilharam ao ponto de partilhar com ele o mesmo destino e, por isso mesmo, ele é que é o herói que merece ser lembrado e, mais ainda, reverencidado pelo legado que nos deixou.
Curiosamente, nessa mesma semana comemora-se um outro dia de orgulho para a liberdade do mundo. Há quase 35 anos, jovens oficiais das forças armadas portuguesas, em associação com diferentes forças da sociedade e expressando um desejo uníssono do povo português, resolveram terminar com uma ditadura despótica e envelhecida, uma que privava as mulheres do direito de voto e que tinha lançado a juventude portuguesa ao sacrifício vão de uma guerra injusta por longos 13 anos. O 25 de Abril trouxe liberdade política à Portugal e às antigas colónias, que foram libertas do julgo da metrópole, mas não só isso, trouxe consigo uma corrente morna, embuída de convicto cheiro de cravos, de que era possível ter esperança em uma vida mais feliz e mais digna, em que os destinos que se revelassem, bons ou maus, teriam sido aqueles que foram escolhidos pelas pessoas, em liberdade, e não por qualquer outro que quisesse decidir por elas.
Essa corrente de sentimento ainda circula por esse valente e heróico país. Está nas mentes e nos corações, a impulsionar a todos com a sua força vibrante, a redimir das misérias, a trazer esperança quando das tristezas no seu significado de amor à liberdade e por isso, deve ser celebrado sempre.
Nesse 25 de Abril, mais que nos outros dias todos do ano, lembremo-nos daqueles que viveram sob a repressão e a tirania e sofreram-nas para que hoje pudéssemos escolher por nós mesmos, mas lembremos sobretudo de que o que moveu aqueles revolucionários de 1974, como aqueles que Tiradentes liderou em 1789, foi o mesmo e mais profundo desejo da alma humana que é desejo de ser livre.
Aos exemplos dos nossos heróis, a coragem para levar a cabo as nossas revoluções particulares para nos libertar das opressões que magoam e, por fim, ter coragem para dar efeito ao que nos pede o coração para fazer, sentir e viver.

terça-feira, abril 14, 2009

Não é fácil...

Passem-se dias, horas, meses, anos
Amadureçam as ilusões da vida
Prossiga ela sempre dividida
Entre compensações e desenganos.

(...)

Soneto de Aniversário, Vinicius de Moraes



Após um longuíssimo repouso, retorna a vida ao Colégio da Trindade, em Coimbra. O quarteirão inteiro que o velho edifício ocupa entre a Faculdade de Direito e a Couraça de Lisboa será o endereço do Tribunal Universitário Europeu, agora já em construção, como bem o sabem os passarinhos das árvores próximas e os turistas que espiam a obra a partir do pátio das escolas. Eu a observo da Sala do Mestrado, no Colégio de São Pedro, onde se defende tradicionalmente os relatórios e onde há uma pequena sacada que proporciona uma vista objectiva do velho colégio.
Sempre me chamou a atenção o facto das suas ruinas ali estarem, em meio à opulência do resto da universidade, do que me foi explicado que o dono não quis negociar o imóvel na altura em que o Estado Novo destruiu metade da alta de Coimbra para ampliar a universidade. Assim, desde o final dos anos de 1940 até o início dos anos de 1970, o Colégio da Trindade perseverou sem grandes reformas, tendo por último servido como residência até quando já não mais aguentava a sua decrepta estrutura, enquanto no seu entorno tudo era ampliado, aumentado e melhorado para o crescimento da universidade.
O dia, entretanto, chegou, como acima já foi anunciado. Afinal, o Colégio da Trindade vai ter destino ainda mais nobre que os seus congêneres da primeira infância da academia portuguesa, quando foram dadas as primeiras aulas, há mais de 700 anos.
Era bom se fôssemos como os prédios antigos e a nossa paciência fosse muito mais do que a condição humana nos permite. É pena que na nossa condição seja difícil ver que a redenção sempre nos alcança enquanto nos mantivermos de pé e com alguma dignidade na cara.
Os dias trazem a todos coisas novas, surpresas novas, idades novas. É bom ficar mais velho sem deixar envelhecer o amor, sem torná-lo amargo e desconfiado, sem contrariá-lo, sem desacreditá-lo. É a fé na sua graça, a sua parte mais íntima em nós, que o faz ser sempre belo e potente, como da verdadeira primeira vez.
É como tentam fazer ao Colégio da Trindade: ao invés de deitar todas as ruinas abaixo e construir um prédio novo e moderno, preservam tudo o que podem e das velhas fundações medievais vai se levantar um edifício recomposto em facilidades e propósitos. No fundo, ainda vai guardar os traços mais basilares da sua natureza, a gradação mais profunda da sua verdade, afinal, redimida.

terça-feira, março 31, 2009

A simular a vida com estranhos

Rose

Já faz quase um ano. Naquela altura não se tinha ainda sobre a cabeça o sol brilhante de Portugal, mas sim a espessa camada de nuvens que deixa Londres com seu aspecto soturno e introspectivo. No coração, no entanto, fazia sol. Pareceu bem uma vida de sacrifícios em segredo, no aguardo de uma felicidade que, afinal, não se verificou, ao menos não como fora esperada. Ter o que fazer, algo pelo que esperar e alguém para amar - eis o que os gregos consideravam ser a felicidade, se não acertaram, ao menos circundaram com muito jeito.

O início da primavera em Londres no ano passado foi muito mais uma continuação do inverno do que um primeiro sorriso a preparar o verão. Os dias não eram tão curtos, é verdade, mas perseverava a chuva ocasional e fria, o entardecer com vento, a necessidade das roupas pesadas - nada que eu deteste mais em termos de desconforto que estar de casaco todo o tempo. Ninguém se animava a ter esperanças sobre o verão: o do ano anterior tinha sido tão frustrante, tão molhado e ventoso, que nos olhares havia resignação com o tempo, toda gente a sonhar com casas no sul de Espanha ou no Algarve.

Entre os estudantes estrangeiros era sempre aquele estúpido "simular a vida com estranhos", como a celebração do natal, do ano novo ou do dia dos anos, ou as conversas sobre coisas pessoais, ou as viagens... não havia naquilo nada mais que uma simulação do que deveria ser algo muito mais significativo, profundo, relevante. Simulavam o amor, diziam tolices, mas não era para fazer rir, de facto, depois de alguma reflexão eram mesmo para chorar.

Abrir a caixa de pandora e dizer a eles que aquilo era um bocado sem sentido era o mesmo que dizer uma verdade inconveniente, aquela que toda gente conhece mas que ninguém quer admitir. Faltava-lhes coragem até para isso!

Não que todos os males dos relacionamentos fingidos sejam culpa dos estudantes intercambistas - eles, ao contrário de todos os outros praticantes, estão escusados com honras: só quem já enfrentou o além-mar sabe do que se trata, estar onde não há ninguém em quem confiar, ninguém com quem falar, nada que se conheça, lugar nenhum onde se possa ir. Do que a coragem é ganha quando se enfrenta esse mundo desconhecido e das suas paredes de fumo compor alicerces de uma vida nova, mesmo que provisória e assim tentar adaptar àquilo as coisas que são queridas: os colegas são rapidamente promovidos a amigos e com eles se gasta muitíssimo tempo a fazer turismo pela capital e a planejar festas, as viagens tornam-se marcos da existência, como uma forma de retirar um pouco da dureza da vida nova e ter algo a frente que tem potencial de dar alguma alegria, o curso assume uma função muito mais de entreter e desanuviar do que propriamente de aprender, enquanto outras preocupações tomam forma, nomeadamente, conseguir um trabalho a tempo parcial (o que na altura em que lá vivi fora mais fácil do que nos dias que correm, suponho eu).

De toda a palhaçada que gira em torno desses relacionamentos sociais, ou melhor, para ser mais politicamente correcto, de toda a superficialidade deles, transbordava vez ou outra uma gotinha de poesia, do que sentia o meu corpo todo se aquecer como uma lâmpada incandescente subitamente iluminada e alimentava-me daquilo com tanta gula que podia ser comparado ao faminto que, a estar a morrer a fome é presenteado com um banquete, sem a garantia, entretanto, de que vai voltar a comer.

Foi assim algumas vezes no Cittie of Yorke, o pub medieval que frequentava com meus colegas e que ficava próximo ao nosso college. Esse foi um dos únicos sítios poupados pelo grande fogo de 1666 que destruiu Londres, um acto que prova a infinita sabedoria e bondade de Deus, segundo os frequentadores mais antigos. Foi lá que ouvi Blake - um dos seus frequentadores célebres - ser declamado por um rapaz que segurava um copo de pint vazio, mas que trazia a voz cheia de paixão, foi lá que, entre sorrisos embaraçados, celebrou-se o final dos exames, foi no nosso Cittie que a vida deixou de parecer uma continuação sem sentido e fez-nos lembrar que éramos todos muito mais do que estranhos obrigados a conviver uns com os outros e destinados a uma inevitável separação - por aqueles breves instantes em que nos esquecíamos disso, das ambições e obrigações, fomos seres humanos a dividir um sorriso colectivo de satisfação, como se dividíssimos um mesmo coração venturoso e aberto, como se houvesse felicidade grega para toda gente e toda gente soubesse desses indizíveis segredos e pudesse percebê-los!

A primavera é outra, o país é outro, mas pouca coisa mudou, à excepção que cá em Coimbra não há pubs e muito menos, que Deus me perdoe, o nosso Cittie of Yorke!

terça-feira, março 17, 2009

Minha chávena de chá

À parte da constipação que faz pesar a cabeça e arder os olhos, não há nada que incomode nesse belo dia de sol. Cantam os passarinhos poucos e no Jardim Botânico o cenário paradisíaco da natureza ganha na sua ordem algum maior encanto, já é quase primavera.
Um passar de olhos pelo jornal: uma anaconda que engoliu um cãozinho de estimação na Austrália e ficou mto pesada para poder evadir-se, um golpe de Estado em Madagascar, o desaparecimento das Ilhas Maldivas e o presidente do Brasil a contar vantagens sobre o seu país, com alguma razão de fazê-lo, mas para que dizer se é possível fazer?
Como um corpo adormecido na cama desfeita evade, com mais facilidade que a anaconda do Território do Norte, o pensamento. Desprendido das outras atenções, a arder nas curvas das considerações devido a essa sorte de doença, deságua no velho oceano do afecto e dilui-se num gozo tolo e doce.
Acção. Eis o que realmente é capaz de fazer esse considerar ser expresso aos outros, de nos deixarmos saber, conhecer, de partilharmos. O silêncio, se por um lado priva os outros de se certificarem da nossa estupidez, lado outro oculta o brilho, a poesia, o encanto, esse não-sei-o-quê capaz de fazer dar voltas à cabeça e arrancar os sorrisos de satisfação. Agir, é preciso agir já, nesse belo dia, nessa hora de pasto que seja, nesse minuto de reflexão, nesse segundo ardido na minha garganta.
Já agora fará mais sentido ter uma agenda para os afazeres. Não convém deixar as pequenas tarefas do dia sobreporem-se, o melhor é resolvê-las. Vai-se à ordem do dia, aos estudos, às coisas da casa, à rotina que dá a face da sanidade da vida tantas vezes.
Um belo copo de vinho para acompanhar o almoço, um peixe grelhado com umas batatas boas bem assadinhas, as cebolas e a salsa. Eis por onde passeia o pensamento nesse minuto, de certo modo a desanuviar-se das obrigações, como se assim elas deixassem de existir. É claro que não é assim.
Relembrando uma vez mais a doce "Blackbird", é preciso apanhar nas asas quebradas e aprender a voar e ver que só se esperava por esse momento para levantar-se, mesmo como numa revolução ou então, na mágica cena de Fred Astaire e Ginger Rogers, reconhecer-se nessa condição de dançar com o rosto colado.
Às armas, cidadãos! Mas enquanto não fico curado da constipação, e não é uma solução má, o melhor é encontrar conforto na minha chávena de chá.

sexta-feira, março 06, 2009

Difícil de explicar

Alguns episódios vivem sempre calmamente no imaginário. São paredes dessa casa subconsciente que não têm de fazer sentido e muitas das vezes não fazem.
Uma dessas paredes é o episódio do Capão à Traição, episódio que marcou o fim da guerra pelas minas, entre os paulistas e os portugueses, brasileiros de outras regiões e o povo das minas.
Os paulistas foram derrotados (esses senhores encontraram os primeiros veios e queriam ser os únicos a explorá-los), e nós os vencedores, mas foi uma vitória indigna. Após seguidas derrotas e reduzidos a umas poucas centenas, os paulistas encontravam-se cercados num capão, que nada mais é que uma porção de mata isolada. Após 2 dias de cerco, os paulistas pediram a rendição em troca de um salvo-conducto para fora da região das minas. O comandante emboaba, Bento do Amaral Coutinho, um "carioca alentado, homicida e insolente", chegou a jurar pela santíssima trindade que garantiria o acordo se os paulistas depusessem as armas, mas logo depois que esses cumpriram a sua parte, os emboabas os massacraram covardemente. Depois da guerra, as capitanias foram separadas, do que marca o nascimento de Minas Gerais. Sempre me questionei se valia a pena ganhar assim, perdendo a si mesmo... E talvez por isso o episódio tenha se tornado uma das paredes (das mais intrusivamente visíveis) desse mundo interior.
Alucinações de uma madrugada junto à Ponte de Santa Clara, uma trova escrita numa porta de casa de banho, um copo de whiskey pela metade e a larga generosidade dos bons amigos. Tudo isso também compõe esse mundo que habita dentro, que é inacessível para os outros e também para nós mesmos.
Como se se fosse adentrar num sonho do conhecimento oculto de nós mesmos, em que a grande piscina nos olhos da amada fosse cheia de licor de anis e houvesse naquele banho o desejo ardente de se embriagar e depois de se dissolver, de se deixar ir, incorporar e passar a testemunhar os crimes e os heroísmos que tocam aquele coração, ser parte dele na sua infinita beleza, ser o seu susto de desespero, ser o seu pulsar apaixonado, ser a sua coragem para o sacrifício, ser a sua paz de ser amada e nunca mais ter medo. Ninguém consegue perceber nada disso, é muito difícil de explicar.
Bonitas mesmo são as luzes da disco a piscar ritmadas e o transe geral, resultado da batida, do álcool, da combinação ocasional de outros estimulantes, num só contemplar desses segredos íntimos, indizíveis e desconhecidos, o apreciar desse eu profundo perdido entre tantas camadas das coisas que as pessoas percebem, aceitam e para as quais devotam suas vidas. Naquele piscar das luzes a comunhão geral (e circunstancial) da nossa condição ante o mistério e o magia da existência.
Lado outro, cabe ponderar que é um portal perigoso de se cruzar. Sessões de hipnose têm sido utilizadas por psiquiatras a fim de auxiliar pacientes que sofreram traumas graves a perceberem melhor toda a situação e, assim, serem curados. Essa técnica de indução permite que se acesse esses conteúdos subconscientes, sendo assim percebidos com mais clareza. O mal que se pode causar reside no facto de nem todas essas lembraças ocultas serem felizes, há muitas que foram propositadamente ignoradas pela mente a fim de ser permitida uma vida de maior paz, sem que se fosse eternamente atormentado pela culpa, pela amargura e pelo remorso. Ainda assim acho que faz muito sentido e que representa uma possibilidade muito útil de se saber o que nós não permitimos a nós mesmos.
É preciso confrontar esses desenganos. Olhá-los nos olhos, desafiá-los. Tão duras e penosas que são essas lembranças ocultas, pode ser que nos esmaguem e nos impeçam de viver o presente de uma maneira desprendida do que aconteceu antes.
O que não se deve nunca esquecer, no entanto, é que a verdade é a única força capaz de nos libertar, de nos permitir sermos nós mesmos, de nos dar a genuína paz que nem os truques do subconsciente, nem o medo da vida seriam capazes de dar.

terça-feira, fevereiro 17, 2009

O abrigo

Foi uma viagem de carro como outra qualquer. Saímos logo depois de tomar o pequeno almoço e pelas primeiras horas tivemos o noticiário matinal a nos entrar pelos ouvidos através do rádio para romper o silêncio.
As mãos no volante frio, a agarrar-lhe para as curvas, para lá, para cá, para lado nenhum talvez, apenas a ir... íamos os dois.
Um belo dia de sol, uma vista para não se esquecer, a experiência que talha na personalidade a sua forma e que vai ser evocada instintivamente por toda vida quando tivermos de nos comportar naquele tipo de situações outra vez.
Na volta, a imersão na sensação de gozo, a amizade boa e generosa, o riso fácil e a preciosa voz de se ouvir fizeram todas um outro momento da vida, na altura em que se acha que a bondade pode ser repartida só por teres tido a sorte (que cada vez mais parece maior) de ter tido com boa gente na tua vida até aquele momento.
Chegamos e separamo-nos, mas não era totalmente verdade. Houve participações recíprocas nos pensamentos alheios. Construiu-se uma boa via de "dar de si" que nos levava a lugares fantásticos, uma via de mão dupla, é bom fazer constar.
Foi aquela viagem, muito provavelmente, a constatação do abrigo que existia em cada um.
Impossível não associar com a emblemática conferência do doutor Campolina na Semana de Filosofia da minha universidade, quando, falando sobre aspectos da ética, ensinou que na primitiva origem grega, "ethos" significa refúgio, abrigo, ou lugar onde se está bem, acostumado. Para mim a ética, desde então, tomou uma feição mais íntima: onde encontramos a nós mesmos na hora de decidir, sem mais mentiras e fingimentos.
Qual um feroz animal em noite de tempestade que encontra um abrigo, encontrou-se paz naquele estado de cumplicidade enamorada. Como se fosse comum aquele tipo de identificação, nem espanto havia e por isso mesmo é que a alegria era sempre original, simples e viva.
Olho para a satisfação de viver com os olhos dela, não são propriamente meus esses olhos. Abraçam quem eu amo uns braços que em muito são os dela e se gargalha também num ritmo que é o da minha amiga. Só quem nos ama verdadeiramente é capaz de nos fazer melhores e nos dar o sentido, a excelência e a beleza que todo o resto das pessoas pode admirar e querer para si, mas que não lhes pertence.
Esse abrigo que é tão confortável, que sabe tão bem desfrutar, tão rico e luminoso, é feito por ela, além de todos os outros que primeiramente deram amor, ao invés de quererem ser amados. Esse abrigo é o que eu me tornei.

sábado, fevereiro 07, 2009

Vamos, vamos, minha gente!

Coimbra passa as noites em claro... não mais nos bares e nas ruas, como na época da festa das latas, mas na solidão dos quartos, sobre as secretárias e os livros, a trabalhar no solitário processo da assimilação dos conhecimentos que, somado ao constante medo do chumbo, marca essa altura do ano para os estudantes. A época de exames está quase no fim, é verdade, mas não será esquecida enquanto perdurarem as obrigações acima das vocações.
Este é o ambiente de opressão geral que é compartilhado na cidade académica, nada capaz de provocar uma onda de suicídios, mas é claro que incomoda, deixando na boca um gosto amargo logo que o pensamento vem à cabeça.
Somado a tudo isso, ainda há as obrigações de cuidar da alimentação, dos exercícios físicos, da casa... Do que não há tempo para nada, nem para quem mais o mereceria, o que realmente faz apertar o coração...
Lado outro, também há vantagens, como não? A pesquisa e a investigação progridem a bom passo: recolha bibliográfica, marcos teóricos, hipóteses, variantes, estratégias de acção e resultados possíveis ocupam as mentes dos estudantes do mestrado em direito, e também desse que vos escreve, meus leitores, no entanto há faíscas de boa fortuna nas cinzas do inverno e para além das opressões e tirania, há ventura, já que nossos conhecimentos nos tornam pessoas mais úteis e preparadas. Um pensamento preenche a imensidão, como um dia disse Blake.
Foi inevitável, nessas circunstâncias, recordar uma das cenas mais doces do cinema de animação: a "the work song" do filme Cinderella, dos estúdios Disney, produção de 1950. A versão brasileira é especialmente bela, pela maneira como a canção foi traduzida, pelas palavras escolhidas: assentam ao ouvido como o amor verdadeiro ao peito.
Nessa cena, os ratinhos e os passarinhos, os únicos amigos que a solitária e sobrecarregada de tarefas da Cinderella tinha, decidem ajudá-la a ir ao baile, preparando o seu vestido, já que ela não teria tempo de fazê-lo por si mesma, devido às suas obrigações (injustamente impostas, diga-se de passagem).
Para Março teremos a IX Semana Cultural da Universidade de Coimbra, maioritariamente encabeçada pela Faculdade de Direito. Digamos que será nossa primavera, nosso grande baile, uma vez que os eventos são bastante interessantes e vão envolver toda a comunidade académica, sempre com um conteúdo interactivo.
Um primeiro renascimento para os convívios e as serenatas, as preparações para a Queima e os fados do Diligência, o estar com quem se quer estar... mas sem descuidar da dissertação!
Entre o frio e a neblina, a chuva constante e os livros pesados para cima e para baixo nas ladeiras antigas, transparece ainda mais o bom propósito do esforço e a liberdade de se ter escolhido esse caminho que, mesmo que custoso, é nosso.
Força, Cinderella.

domingo, janeiro 25, 2009

Antiga, mui nobre, sempre leal e invicta

Ponte Dom Luiz I vista das escadas do café Mira Douro

Não bastou o centenário de Manuel de Oliveira, nem os convites dos amigos, teve mesmo de ser por obrigação que acabei por me ver em meio à doçura tão própria das ruas da cidade do Porto.

Hoje o Porto é a segunda maior cidade do país, com uma economia mais pujante que a das outras regiões em diversos sectores, especialmente os de tecnologia. Para além disso, persevera o seu talento natural para a vinicultura, na produção do mundialmente famoso e tão bom vinho do Porto.

Suas ruas, largos, avenidas, jardins, edifícios e igrejas parecem afinal um só, numa unidade que é difícil de definir mas que é plena desse genuíno conceito que informa o que é verdadeiramente português.

A cidade recebeu-me com seu habitual sorriso, mesmo em meio à chuva e ao frio que o inverno lhe impele, deixando às sombras umas feições tão formosas e cheias de confiança, que refletem com perfeição o próprio povo portuense.

Trata-se de uma satisfação que me acompanha da época da segunda infância, quando lia sobre a fantástica história do cerco do Porto no século XIX, numa guerra em que estava em jogo a liberdade e a justiça. Nesse conflito em que os números pendiam largamente para o lado de um poder opressor e absolutista, em muito deve-se à cidade do Porto o triunfo da verdade e da soberania do povo português.

Ao percorrer as ruas do Porto antigo, a descer até à Ribeira para junto do rio Douro, imagino os combates e a emoção, mas sobretudo a privação e os sacrifícios pelos quais o povo do Porto teve de atravessar e resistir, como a fome, a morte dos amigos, vizinhos e parentes... Uma luta que não lhes rendeu bens ou títulos, mas que, motivada pelos mais altos ideais, significou um legado de honra e bravura imperecíveis.

O líder dos liberais, vencedor do conflito, era um homem que, mesmo não tendo nascido no Porto (nasceu mesmo em Lisboa), tinha um coração portuense. Tanto assim que o legou à cidade do Porto, encontrando-se até hoje na Igreja da Lapa como uma relíquea o coração do Imperador Dom Pedro I do Brasil ou El-Rei Dom Pedro IV de Portugal.

Não tenho intenção de liderar revolução nenhuma, toda gente merece a paz. Mas assim como aqueles senhores que lutaram do lado liberal preferiam a morte do que uma vida de sujeição ao mal e à tirania, também eu não teria receio de defender o ideal, o mais íntimo comprometimento com nós mesmos.

Em segredo, a olhar a ponte Dom Luíz I na sexta-feira passada, desejei que mais e mais acasos acontecessem a me trazer ao Porto, como é bom lá estar, como me é natural tudo aquilo. Se eu não nasci no Porto, pelo menos sei com toda certeza a que terra pertence o meu coração.