terça-feira, março 17, 2009

Minha chávena de chá

À parte da constipação que faz pesar a cabeça e arder os olhos, não há nada que incomode nesse belo dia de sol. Cantam os passarinhos poucos e no Jardim Botânico o cenário paradisíaco da natureza ganha na sua ordem algum maior encanto, já é quase primavera.
Um passar de olhos pelo jornal: uma anaconda que engoliu um cãozinho de estimação na Austrália e ficou mto pesada para poder evadir-se, um golpe de Estado em Madagascar, o desaparecimento das Ilhas Maldivas e o presidente do Brasil a contar vantagens sobre o seu país, com alguma razão de fazê-lo, mas para que dizer se é possível fazer?
Como um corpo adormecido na cama desfeita evade, com mais facilidade que a anaconda do Território do Norte, o pensamento. Desprendido das outras atenções, a arder nas curvas das considerações devido a essa sorte de doença, deságua no velho oceano do afecto e dilui-se num gozo tolo e doce.
Acção. Eis o que realmente é capaz de fazer esse considerar ser expresso aos outros, de nos deixarmos saber, conhecer, de partilharmos. O silêncio, se por um lado priva os outros de se certificarem da nossa estupidez, lado outro oculta o brilho, a poesia, o encanto, esse não-sei-o-quê capaz de fazer dar voltas à cabeça e arrancar os sorrisos de satisfação. Agir, é preciso agir já, nesse belo dia, nessa hora de pasto que seja, nesse minuto de reflexão, nesse segundo ardido na minha garganta.
Já agora fará mais sentido ter uma agenda para os afazeres. Não convém deixar as pequenas tarefas do dia sobreporem-se, o melhor é resolvê-las. Vai-se à ordem do dia, aos estudos, às coisas da casa, à rotina que dá a face da sanidade da vida tantas vezes.
Um belo copo de vinho para acompanhar o almoço, um peixe grelhado com umas batatas boas bem assadinhas, as cebolas e a salsa. Eis por onde passeia o pensamento nesse minuto, de certo modo a desanuviar-se das obrigações, como se assim elas deixassem de existir. É claro que não é assim.
Relembrando uma vez mais a doce "Blackbird", é preciso apanhar nas asas quebradas e aprender a voar e ver que só se esperava por esse momento para levantar-se, mesmo como numa revolução ou então, na mágica cena de Fred Astaire e Ginger Rogers, reconhecer-se nessa condição de dançar com o rosto colado.
Às armas, cidadãos! Mas enquanto não fico curado da constipação, e não é uma solução má, o melhor é encontrar conforto na minha chávena de chá.

sexta-feira, março 06, 2009

Difícil de explicar

Alguns episódios vivem sempre calmamente no imaginário. São paredes dessa casa subconsciente que não têm de fazer sentido e muitas das vezes não fazem.
Uma dessas paredes é o episódio do Capão à Traição, episódio que marcou o fim da guerra pelas minas, entre os paulistas e os portugueses, brasileiros de outras regiões e o povo das minas.
Os paulistas foram derrotados (esses senhores encontraram os primeiros veios e queriam ser os únicos a explorá-los), e nós os vencedores, mas foi uma vitória indigna. Após seguidas derrotas e reduzidos a umas poucas centenas, os paulistas encontravam-se cercados num capão, que nada mais é que uma porção de mata isolada. Após 2 dias de cerco, os paulistas pediram a rendição em troca de um salvo-conducto para fora da região das minas. O comandante emboaba, Bento do Amaral Coutinho, um "carioca alentado, homicida e insolente", chegou a jurar pela santíssima trindade que garantiria o acordo se os paulistas depusessem as armas, mas logo depois que esses cumpriram a sua parte, os emboabas os massacraram covardemente. Depois da guerra, as capitanias foram separadas, do que marca o nascimento de Minas Gerais. Sempre me questionei se valia a pena ganhar assim, perdendo a si mesmo... E talvez por isso o episódio tenha se tornado uma das paredes (das mais intrusivamente visíveis) desse mundo interior.
Alucinações de uma madrugada junto à Ponte de Santa Clara, uma trova escrita numa porta de casa de banho, um copo de whiskey pela metade e a larga generosidade dos bons amigos. Tudo isso também compõe esse mundo que habita dentro, que é inacessível para os outros e também para nós mesmos.
Como se se fosse adentrar num sonho do conhecimento oculto de nós mesmos, em que a grande piscina nos olhos da amada fosse cheia de licor de anis e houvesse naquele banho o desejo ardente de se embriagar e depois de se dissolver, de se deixar ir, incorporar e passar a testemunhar os crimes e os heroísmos que tocam aquele coração, ser parte dele na sua infinita beleza, ser o seu susto de desespero, ser o seu pulsar apaixonado, ser a sua coragem para o sacrifício, ser a sua paz de ser amada e nunca mais ter medo. Ninguém consegue perceber nada disso, é muito difícil de explicar.
Bonitas mesmo são as luzes da disco a piscar ritmadas e o transe geral, resultado da batida, do álcool, da combinação ocasional de outros estimulantes, num só contemplar desses segredos íntimos, indizíveis e desconhecidos, o apreciar desse eu profundo perdido entre tantas camadas das coisas que as pessoas percebem, aceitam e para as quais devotam suas vidas. Naquele piscar das luzes a comunhão geral (e circunstancial) da nossa condição ante o mistério e o magia da existência.
Lado outro, cabe ponderar que é um portal perigoso de se cruzar. Sessões de hipnose têm sido utilizadas por psiquiatras a fim de auxiliar pacientes que sofreram traumas graves a perceberem melhor toda a situação e, assim, serem curados. Essa técnica de indução permite que se acesse esses conteúdos subconscientes, sendo assim percebidos com mais clareza. O mal que se pode causar reside no facto de nem todas essas lembraças ocultas serem felizes, há muitas que foram propositadamente ignoradas pela mente a fim de ser permitida uma vida de maior paz, sem que se fosse eternamente atormentado pela culpa, pela amargura e pelo remorso. Ainda assim acho que faz muito sentido e que representa uma possibilidade muito útil de se saber o que nós não permitimos a nós mesmos.
É preciso confrontar esses desenganos. Olhá-los nos olhos, desafiá-los. Tão duras e penosas que são essas lembranças ocultas, pode ser que nos esmaguem e nos impeçam de viver o presente de uma maneira desprendida do que aconteceu antes.
O que não se deve nunca esquecer, no entanto, é que a verdade é a única força capaz de nos libertar, de nos permitir sermos nós mesmos, de nos dar a genuína paz que nem os truques do subconsciente, nem o medo da vida seriam capazes de dar.

terça-feira, fevereiro 17, 2009

O abrigo

Foi uma viagem de carro como outra qualquer. Saímos logo depois de tomar o pequeno almoço e pelas primeiras horas tivemos o noticiário matinal a nos entrar pelos ouvidos através do rádio para romper o silêncio.
As mãos no volante frio, a agarrar-lhe para as curvas, para lá, para cá, para lado nenhum talvez, apenas a ir... íamos os dois.
Um belo dia de sol, uma vista para não se esquecer, a experiência que talha na personalidade a sua forma e que vai ser evocada instintivamente por toda vida quando tivermos de nos comportar naquele tipo de situações outra vez.
Na volta, a imersão na sensação de gozo, a amizade boa e generosa, o riso fácil e a preciosa voz de se ouvir fizeram todas um outro momento da vida, na altura em que se acha que a bondade pode ser repartida só por teres tido a sorte (que cada vez mais parece maior) de ter tido com boa gente na tua vida até aquele momento.
Chegamos e separamo-nos, mas não era totalmente verdade. Houve participações recíprocas nos pensamentos alheios. Construiu-se uma boa via de "dar de si" que nos levava a lugares fantásticos, uma via de mão dupla, é bom fazer constar.
Foi aquela viagem, muito provavelmente, a constatação do abrigo que existia em cada um.
Impossível não associar com a emblemática conferência do doutor Campolina na Semana de Filosofia da minha universidade, quando, falando sobre aspectos da ética, ensinou que na primitiva origem grega, "ethos" significa refúgio, abrigo, ou lugar onde se está bem, acostumado. Para mim a ética, desde então, tomou uma feição mais íntima: onde encontramos a nós mesmos na hora de decidir, sem mais mentiras e fingimentos.
Qual um feroz animal em noite de tempestade que encontra um abrigo, encontrou-se paz naquele estado de cumplicidade enamorada. Como se fosse comum aquele tipo de identificação, nem espanto havia e por isso mesmo é que a alegria era sempre original, simples e viva.
Olho para a satisfação de viver com os olhos dela, não são propriamente meus esses olhos. Abraçam quem eu amo uns braços que em muito são os dela e se gargalha também num ritmo que é o da minha amiga. Só quem nos ama verdadeiramente é capaz de nos fazer melhores e nos dar o sentido, a excelência e a beleza que todo o resto das pessoas pode admirar e querer para si, mas que não lhes pertence.
Esse abrigo que é tão confortável, que sabe tão bem desfrutar, tão rico e luminoso, é feito por ela, além de todos os outros que primeiramente deram amor, ao invés de quererem ser amados. Esse abrigo é o que eu me tornei.

sábado, fevereiro 07, 2009

Vamos, vamos, minha gente!

Coimbra passa as noites em claro... não mais nos bares e nas ruas, como na época da festa das latas, mas na solidão dos quartos, sobre as secretárias e os livros, a trabalhar no solitário processo da assimilação dos conhecimentos que, somado ao constante medo do chumbo, marca essa altura do ano para os estudantes. A época de exames está quase no fim, é verdade, mas não será esquecida enquanto perdurarem as obrigações acima das vocações.
Este é o ambiente de opressão geral que é compartilhado na cidade académica, nada capaz de provocar uma onda de suicídios, mas é claro que incomoda, deixando na boca um gosto amargo logo que o pensamento vem à cabeça.
Somado a tudo isso, ainda há as obrigações de cuidar da alimentação, dos exercícios físicos, da casa... Do que não há tempo para nada, nem para quem mais o mereceria, o que realmente faz apertar o coração...
Lado outro, também há vantagens, como não? A pesquisa e a investigação progridem a bom passo: recolha bibliográfica, marcos teóricos, hipóteses, variantes, estratégias de acção e resultados possíveis ocupam as mentes dos estudantes do mestrado em direito, e também desse que vos escreve, meus leitores, no entanto há faíscas de boa fortuna nas cinzas do inverno e para além das opressões e tirania, há ventura, já que nossos conhecimentos nos tornam pessoas mais úteis e preparadas. Um pensamento preenche a imensidão, como um dia disse Blake.
Foi inevitável, nessas circunstâncias, recordar uma das cenas mais doces do cinema de animação: a "the work song" do filme Cinderella, dos estúdios Disney, produção de 1950. A versão brasileira é especialmente bela, pela maneira como a canção foi traduzida, pelas palavras escolhidas: assentam ao ouvido como o amor verdadeiro ao peito.
Nessa cena, os ratinhos e os passarinhos, os únicos amigos que a solitária e sobrecarregada de tarefas da Cinderella tinha, decidem ajudá-la a ir ao baile, preparando o seu vestido, já que ela não teria tempo de fazê-lo por si mesma, devido às suas obrigações (injustamente impostas, diga-se de passagem).
Para Março teremos a IX Semana Cultural da Universidade de Coimbra, maioritariamente encabeçada pela Faculdade de Direito. Digamos que será nossa primavera, nosso grande baile, uma vez que os eventos são bastante interessantes e vão envolver toda a comunidade académica, sempre com um conteúdo interactivo.
Um primeiro renascimento para os convívios e as serenatas, as preparações para a Queima e os fados do Diligência, o estar com quem se quer estar... mas sem descuidar da dissertação!
Entre o frio e a neblina, a chuva constante e os livros pesados para cima e para baixo nas ladeiras antigas, transparece ainda mais o bom propósito do esforço e a liberdade de se ter escolhido esse caminho que, mesmo que custoso, é nosso.
Força, Cinderella.

domingo, janeiro 25, 2009

Antiga, mui nobre, sempre leal e invicta

Ponte Dom Luiz I vista das escadas do café Mira Douro

Não bastou o centenário de Manuel de Oliveira, nem os convites dos amigos, teve mesmo de ser por obrigação que acabei por me ver em meio à doçura tão própria das ruas da cidade do Porto.

Hoje o Porto é a segunda maior cidade do país, com uma economia mais pujante que a das outras regiões em diversos sectores, especialmente os de tecnologia. Para além disso, persevera o seu talento natural para a vinicultura, na produção do mundialmente famoso e tão bom vinho do Porto.

Suas ruas, largos, avenidas, jardins, edifícios e igrejas parecem afinal um só, numa unidade que é difícil de definir mas que é plena desse genuíno conceito que informa o que é verdadeiramente português.

A cidade recebeu-me com seu habitual sorriso, mesmo em meio à chuva e ao frio que o inverno lhe impele, deixando às sombras umas feições tão formosas e cheias de confiança, que refletem com perfeição o próprio povo portuense.

Trata-se de uma satisfação que me acompanha da época da segunda infância, quando lia sobre a fantástica história do cerco do Porto no século XIX, numa guerra em que estava em jogo a liberdade e a justiça. Nesse conflito em que os números pendiam largamente para o lado de um poder opressor e absolutista, em muito deve-se à cidade do Porto o triunfo da verdade e da soberania do povo português.

Ao percorrer as ruas do Porto antigo, a descer até à Ribeira para junto do rio Douro, imagino os combates e a emoção, mas sobretudo a privação e os sacrifícios pelos quais o povo do Porto teve de atravessar e resistir, como a fome, a morte dos amigos, vizinhos e parentes... Uma luta que não lhes rendeu bens ou títulos, mas que, motivada pelos mais altos ideais, significou um legado de honra e bravura imperecíveis.

O líder dos liberais, vencedor do conflito, era um homem que, mesmo não tendo nascido no Porto (nasceu mesmo em Lisboa), tinha um coração portuense. Tanto assim que o legou à cidade do Porto, encontrando-se até hoje na Igreja da Lapa como uma relíquea o coração do Imperador Dom Pedro I do Brasil ou El-Rei Dom Pedro IV de Portugal.

Não tenho intenção de liderar revolução nenhuma, toda gente merece a paz. Mas assim como aqueles senhores que lutaram do lado liberal preferiam a morte do que uma vida de sujeição ao mal e à tirania, também eu não teria receio de defender o ideal, o mais íntimo comprometimento com nós mesmos.

Em segredo, a olhar a ponte Dom Luíz I na sexta-feira passada, desejei que mais e mais acasos acontecessem a me trazer ao Porto, como é bom lá estar, como me é natural tudo aquilo. Se eu não nasci no Porto, pelo menos sei com toda certeza a que terra pertence o meu coração.

domingo, dezembro 28, 2008

O verão do ano que vem

Mallu e Marcelo

Um ano que se vai é como um trabalho que se termina: seu começo, seu desenvolver e o seu concluir parecem unidos sob o mesmo véu que, uma vez levantado no dia 31 de Dezembro, deixa à mostra o que significou a vida naquele espaço de tempo: os projectos, os sonhos e perspectivas, as incertezas que agora se confirmaram para o bem e para o mal.
Dentre outras coisas, vou me lembrar sempre de 2008 pelo lançamento do primeiro disco solo de Marcelo Camelo, dos Los Hermanos. O "Sou" é um bocado inclassificável, mas há ali bossa nova, pop rock, marchinha de carnaval e o gênero "um banquinho e um violão" de MPB.
Numa das faixas do disco, logo ouvi uma vozinha feminina que me chamou muito a atenção: era bem afinada, corajosa (lembra até a Amália na coragem de imposição da voz) e infinitamente doce. O nome da moça é Mallu Magalhães e embora eu nunca tivesse antes ouvido falar dela, rapidamente passou a fazer parte das colectâneas que ando a escutar e em muito contribui para a alegria deste rapaz.
O convite do Marcelo para que a Mallu participasse do seu disco reverteu, como foi o meu caso, no encontro de quem gosta dos Los Hermanos com essa moça, mas mais que isso, penso eu, resultou, um pouco mais à frente, no romance dela com o barbudo.
O detalhe que os poderia afastar é que a moça tem 16 anos completados há pouco e o senhor Camelo já caminha para os seus 31. No coração, no entanto, são muito próximos... como ambos compõe o que cantam, é possível ter uma idéia de como pensam e as coisas convertem para os mesmos lados, assim como se converteram seus abraços.
Duvido muito que o Marcelo esperasse por algo assim. Grande romântico que é, o Camelo é dos que já viveram essas cenas amorosas mais intensamente e assim costumam vestir luvas antes de tocar alguém. A Mallu, entretanto, é a própria simplicidade, senso de atitute e beleza, é a musa do poeta, pequena e incorrompida, e por isso mesmo há ali aquela reciprocidade que faz as coisas darem certo, pois como bem dizia o nosso Vinicius de Moraes, nós não fazemos amigos [ou amores], mas sim reconhecemo-los.
2008 para mim foi isso: o acaso inesperado, a beleza da vida a se desenhar com o passar dos dias, a fortuna que é reservada aos que procuram ventura, mais que aventura e confiam que estarão preparados para o que quer que venha.
Nessa perspectiva e por estar contraído de frio, (pois escrevo de frente para a janela aberta do quarto, a tirar proveito da linda vista), sobe pelas entranhas o desejo do verão do ano que vem, numa sanha tão doida que só pode ser explicada pelo conforto de vestir roupas mais leves, de ver mais cores, de estar mais à vontade pelas ruas, entre outras múltiplas e quentes vantagens.
O inverno tem seu charme (menor que o do outono, de certeza), mas nos priva de muita coisa, diria até que é uma estação menos sociável, não favorece muito os convívios, senão indirectamente (é a época que se encontram nos supermercados as cervejas pretas ou stouts, que embora não sejam como as britânicas já são melhores que o resto).
A esse desejo dos dias quentes, soma-se saber o quão ensolarada anda a linda América do Sul, seus vales e montanhas, rios e praias, suas cidades e aldeias, inundadas de sol, calor e boas promessas: o sul americano é um optimista por natureza e para esse espírito contribui muito a fartura de beleza e calor que o circunda por toda a vida. Ademais, diga-se que os últimos três verões desse que vos escreve foram tipicamente ingleses: nebulosos, cheios de chuva e malogrados dias de sol.
Há uma fome de calor, de sorriso, de bem-estar, de respirar fundo, há mais que tudo a esperança na renovação de tudo de belo que envolve a vida, os amigos, os lugares, a fé, o ideal, as lutas.
Lembro-me ainda vivamente do soturno Finsbury Park no inverno, as caveiras saltadas para junto do pêlo dos esquilos, as folhas apodrecidas na calçada, assim como dos fogos junto ao rio Tâmisa na noite de fim de ano, quando aquele milhão e tal de pessoas, originárias de todos os cantos do mundo, uniram-se num (mais ébrio do que fraterno) abraço à espera do que viria em seguida ao espetáculo pirotécnico. Nada mais substituiu as luzes do que o fumo. De tudo, resta no coração mais o caminho do que o destino.
O fumo a encobrir o horizonte do futuro parece o mesmo que aquele feito do queimar de roupas do falecido: de onde se acaba uma tarefa já adiante toma forma uma outra que, ano a ano, aprendi a chamar de "o verão do ano que vem".

sábado, dezembro 20, 2008

A esperança do Natal

Da varanda do Instituto Justiça e Paz, acompanhado da chícara de café e imerso num grande silêncio, vejo as luzes ao longo do rio que corre lá em baixo e o frenesi de esperanças da época do natal.
Muita gente viaja. A maioria para ir ter com os entes queridos, outros para algum sítio exótico, para fazer um passeio, para ignorar o feitio familiar do natal. É possível que esse seja o sentido mais apropriado para se perceber essa altura do ano, aquele que se refere à família.
Evidentemente, foi no dia 25 de Dezembro que Jesus nasceu e isso é o que é celebrado, natal é um adjectivo para nascimento. Tivemos nesse dia a chegada do Salvador.
A alegoria do nascimento numa manjedoura, da grande solidão de Maria e de José sem saberem como aquilo iria correr e, ponto alto, a circunstância do menino ter nascido saudável e bem constituído, dá-nos a perfeita idéia do que é chamado a Sagrada Família.
Embora o homem e a mulher quando se unem, seja lá através de que cerimônia for, formem uma família, a mesma só é concretizada mais amplamente quando dos frutos dessa união, ou seja, os filhos. No dia 25 de Dezembro do ano 1 Jesus veio enlaçar aquele amor comum de Maria e José, embora não sendo propriamente filho desse último, o que não importa nada no fim das contas.
Nesses termos, o dia 25 de Dezembro é o dia da família, o dia do amor familiar, o dia em que as pessoas devem lembrar-se de onde vieram, de quem os amparou na débil idade de criança e os deu valores e formação, outros devem lembrar-se alegremente da responsabilidade de prover um lar com os mesmos valores e constituído nos mesmos princípios.
É tempo de festejar uma das mais santas instituições da nossa civilização e que, embora venha há muito sofrendo os duros golpes do individualismo exacerbado, ainda existe e, em muitos casos, vigorosa e lindamente.
Por conta do amor das famílias do mundo é que devemos ter esperanças. Nada é capaz de nos humanizar mais, de nos tornar mais próximos da caridade e do espírito de dever do que a perfeita compreensão da importância da família e do seu significado: eis a grande prenda que se pode dar e receber no Natal e durante todo o ano.
Dentro dessa percepção das coisas é que desejo aos meus amigos e familiares um Bom Natal e ano novo com muita saúde e alegrias.
Bebam e celebrem por mim.

sexta-feira, dezembro 05, 2008

Gepeto: faz para mim essa mulher

Eis a frase escrita no paredão em frente à entrada do jardim botânico e já a envelhecer junto de todas as outras coisas que sofrem com o tempo: "Gepeto: faz para mim essa mulher".
Quem a escreveu não assinou e é melhor que seja assim, esse desejo que não se comunica a ninguém e que quando é feito, é feito no segredo do anonimato.
Quando o Gepeto fez o Pinóquio foi porque queria ter um filho. O velho marceneiro via os bambini a correr felizes pelas ruas e a ele a solidão de uma casa vazia. Depois de se esmerar e terminar o mais bonito de todos os bonecos de madeira já feitos, chorou frente a sua obra ao sentir no fundo da alma a sua miséria, e deu-lhe o nome de Pinóquio, lamentando-se que não fosse que um inanimado objecto.
No decorrer daquela noite que se seguiu, entretanto, coisas se passaram. Uma fada madrinha apareceu, a Fada Azul, e sensibilizada com as lágrimas do velhote, resolveu dar vida ao boneco. Com um toque da varinha mágica, Pinóquio veio à vida, falador e deslumbrado com tudo. A fada explicou-lhe que ele era filho de um homem muito bom chamado Gepeto e que deveria obedecer-lhe e ser um bom menino, do que o boneco concordou entusiasticamente, prometendo ainda que não iria nunca mentir, sob pena de ter o nariz espichado cada vez que o fizesse.
Na manhã seguinte Gepeto foi à oficina logo cedo e, para sua surpresa, Pinóquio estava vivo, a dar saltinhos animados e muito bem disposto. Uma grande alegria invadiu o coração do velho senhor, como a chegada de uma primavera por muito esperada, a vingar um desolador inverno que lhe deixara vincos no belo coração, mas que não o massacrara a ponto de virar-lhe para a maldade. Alegrou-se tão sinceramente como uma criança experimenta a alegria, sem dela suspeitar nenhuma ponta de futura mágoa. Pinóquio adorou seu paizinho, sempre lembrando de sua promessa à Fada Azul.
Logo surgiu na alma do boneco vivo, entretanto, um grande desejo de ser um menino de verdade - não mais andar descalço como se de sapatos estivesse, não mais olhos pintados crispados, mas sim carne macia e pele morna, cabelos ao vento e uma linguinha para sentir o sabor das coisas do mundo. Sim, o mundo. Pinóquio ia desenvolvendo uma gigantesca curiosidade sobre as coisas do mundo, a primeira fonte de seu triste fado. O velhote, entretanto, não tinha fantasias tolas a lhe tirar o foco da situação das coisas: estava feliz em não ser mais só e se o Pinóquio era só um boneco de madeira, pronto, tal importava pouco ou nada... o importante é que tinha saúde!
Vê-se que mais que vida ao boneco de madeira, a fada madrinha deu-lhe uma alma humana.
"Gepeto: faz para mim essa mulher", não é exactamente uma encomenda de uma mulher toda gira e bem disposta... (embora não haja nada de errado nisso). É, antes e com muito mais razão, o desejo de ter ao lado a que nos perceba completamente, a que mereça aquele amor mítico a que os poetas louvam como incondicional, coroado na amizade, ratificado pela intensidade recíproca, o único que enobrece a condição humana e da a ela sua verdadeira e mais bela razão de ser e existir.
Será que esse profundo nível de entrega é mesmo possível quando o ouro de tolo que nos é apresentado como valor maior (o fugaz, genérico e obtuso termo "felicidade" pode designar esse prémio) manda não dar muita atenção ao que lhe compromete?
Não consigo conceber nada a não ser essa profunda e incondicional fé no sentimento pela pessoa que se quer para estar conosco como digna de ser chamada "amor". Todo o resto são expressões menores ou simulacros dele, tentativas de corações perseverantes que vão por vezes perecer, ou um desporto mórbido praticado por tolos que gostam de mentir para os outros e para si mesmos.
Nesse nosso mundo de tão pouca fé, entretanto, ainda existem bons Gepetos a acreditar no amor verdadeiro. Umas inventivas e generosas pessoas que querem ir além de si mesmas e que deixam o mundo tão melhor do que era antes delas existirem.
Quanto aos mentirosos, embora não tenham o nariz na cara crescido para desmascarar seus falsos, têm na alma alguma coisa diminuída... Encarrega-se o tempo e as próprias circunstâncias da vida de dar-lhes a volta, dando-lhes miséria pela miséria que aos que neles confiaram deram, privando-lhes da grande alegria que é a participação da poesia na coragem no amor, relegando-os a uma vida sem nortes maiores que os pequenos fins egoísticos e plena de uma sólida e definitiva solidão.
Por isso, meus bons leitores, cuidadinho com isso de gostar de alguém: muito zelo, muita paixão e muita, mas mesmo muita coragem. Nada pelo que se vão arriscar na vida vale tanto.

quarta-feira, novembro 19, 2008

Especial

A comissária para assuntos regionais da União Européia já alertou que Portugal tem de começar a investir em suas pequenas e médias empresas, ao invés de continuar a comprometer recursos comunitários em pontes e comboios de alta velocidade, como quer o primeiro ministro que penteia o cabelo para frente, como se calvo potencial fosse.
Pode parecer uma maçada falar em assuntos assim, entretanto, quando o cinto apertar e faltar dinheiro para as viagens, o cinema e até para a gasolina do carrinho querido, aí talvez seja interessante saber o que se passa no mundo.
Foi puramente por amor ao debate que estive a conversar com um colega sobre o assunto um desses dias, com o Diário Económico à mão, quando ouvi o argumento de que era um investimento especial o que se deveria fazer fazer em infraestrutura e portanto não poderia se perder tempo com outras discussões.
Como a boa retórica manda, a primeira atitude para vencer um argumento é desacriditá-lo e isso se faz com perguntas quanto a raiz da idéia contrária.
O que é ser especial? És tu especial? A tua família? Tua casa? Tua cidade? Teu país? Vale tudo isso de alguma coisa?
O método socrático é perigoso, é administrar em doses suaves para não haver desmaios nem indisposições.
É especialmente interessante notar que Portugal precisa de fazer do que é pequeno e médio, grande. E não me refiro ao espírito pessimista de alguns, isso se melhorasse adiantava muito, mas a idéia aqui é dinamizar os meios de produção para uma escala continental.
Então por que as senhoras que fazem doce em potes na Madeira não podem exportar para a Alemanha? E por que o recém licenciado em farmácia não pode abrir um estabelecimento com outro colega para venderem remédios à encomenda para o mercado local e de Espanha? E os engenheiros que pretendem lançar projectos imobiliários, em sua própria empresa, e vender para França e Inglaterra, não tem apoio e orientação?
Porque, meus amigos, mais que abrir linhas de crédito e micro-crédito para Portugal se levantar da estagnação para a prosperidade, mais que criar mais centros de fomento à pesquisa e inovação tecnológica que acrescentarão mais valia ao esforço e ao suor que corre pela nossa cara, mais que libertar do desemprego e da dependência, da miséria e da humilhação, da privação... mais que tudo que seria certo fazer de verdade, há o que seria ESPECIALMENTE interessante fazer: mais uma ponte sobre o Tejo e o TGV para ligar Lisboa ao Porto.
E assim passam-se os anos... e assim padece, por tantos mais anos quanto não se sabe, toda a gente portuguesa que não é dona de bancos.

terça-feira, novembro 04, 2008

Terra querida

Nina e Mariana

A minha terra espera por mim como quem guarda para toda vida um querer-bem sem nenhuma obrigação de fazê-lo.
Eu procuro bem fugir às saudades e numa bela medida tenho até conseguido! Faz muito bem estar na capital do amor em Portugal, junto dessa boa gente daqui que é sempre tão generosa e com quem partilho uma grande afinidade de gostos e com quem é tão normal sorrir. Entretanto, vão chegando notícias do lado de lá que ficam a passear no pensamento subtilmente e delas trazem outras e mais outras lembranças.
A minha prima Mariana, tão pequenina, já vai se formar em breve. O meu irmão deu um presente caro à namorada. O meu primo Júlio comprou a mota de competição que sempre quis. O meu tio Maximiano perdeu as eleições municipais!
Parece-me que estão todos bem. Ao menos me tem poupado das aflições e contam só coisas boas. São muito cuidadosos em geral e contam como vai aquela boa vida na nossa pátria, onde ser feliz é algo natural e simples.
Também fiquei a saber que já foi reaberto o parque do Museu Mariano Procópio, o que por si só causou-me imensa impressão.
Trata-se, precisamente, de um sítio muito belo, onde fui da primeira vez ainda criança para conhecer o museu e que me fez amar Juiz de Fora pela sua beleza íntima.
O parque é portanto uma vasta área com muitos jardins e lagos com ilhotas, há um monumento à Princesa Isabel, a redentora, e muitos caminhos por onde se segue para chegar ao alto do monte onde está o museu. Muitas vezes passeou o menino ali com sua amiga bicicleta nas manhãs de domingo, especialmente quando era época de exames e precisava aliviar a tensão! Outras vezes era ali que se ia quando queríamos impressionar os que eram de fora e visitavam a cidade da primeira vez. Muitas vezes, apenas a passear pela cidade era aquele por vezes o sítio eleito quando apetecia estar só.
Foi agora entregue ao público após uma ampla reforma, todo reestruturado, com novas plantinhas, gaivotas para se passear pelo lago, o mini-zoo condicionado com boas estruturas, um bom café com gente simpática a servir as pessoas, os caminhos mais pavimentados e bem feitinhos, uma área de brincadeiras para os pequenos, enfim... tudo novo e com muito bom aspecto, como merece a nossa bela Juiz de Fora, princesa de Minas Gerais.
Eu fico a acompanhar todos esses acontecimentos aqui de longe sem saber bem quando é que vou lá ver isso tudo, ter com essa boa gente que me ama com toda a paciência, mas plenamente consciente e grato por existirem os senhores parentes e amigos e a boa terra, doces criaturas e lugares que eu amo e estão sempre comigo.

quarta-feira, outubro 29, 2008

Simples, leve e doce

Para quem ainda não sabe, andamos numa altura do ano muito especial em Coimbra. É época da festa das latas, a ocasião que sucede as praxes e que marca portanto o início do ano académico e da recepção dos caloiros (tratados por alguns de "animais") no meio.
Mas festa das latas por quê? Iriam perguntar os senhores que nunca ouviram falar nisso. A coisa toda começou por conta de se comemorar nessa época também o final tardio do ano académico anterior, quando quem estava para chumbar vazia os exames de 2ª época e no último minuto conseguia passar. Daí saiam os estudantes a partir da Faculdade de Direito para as ruas da Alta com panelas, latas e tudo quanto houvesse nas mãos para comemorar aquilo.
Hoje em dia, entretanto, é mais porque no dia do cortejo amarram-se latas aos pés do caloiro para que toda gente saiba que lá vem o dito senhor.
Ontem foi esse dia, o esperado desfile dos caloiros. Fantasiados das coisas mais engraçadas, sempre a obedecer as cores do curso e a partir da cidade universitária, foram descendo as ruas, passando pela Praça da República, depois a Avenida Sá da Bandeira, sempre em direcção ao rio Mondego, para serem baptizados!
Os doutores é que comandam, como tem de ser. Cada caloiro tem um doutor como padrinho que portanto deve zelar pelo novato. Havia doutores, entretanto, que levavam seus caloiros à coleira e o fulano a rir-se daquilo como se fosse a coisa mais engraçada do mundo! Outros marmanjos com meias-calça ou mesmo de tanguinha, apesar do frio brutal da tarde!
Toda a gente a descer como uma onda em direcção ao rio. Também lá fomos nós um pouco embalados naquilo e muito bem abraçadinhos, no melhor espírito académico!
Aos colegas do direito até foi doada uma moeda de 20 cêntimos... e para rebater a fome, um saquinho de pipocas doces... quanta doçura!
Ao pé do Mondego, uma grande friagem, mas digamos que o pessoal já se encontrava bem "aquecido" e assim foram descendo as escadas que iam mergulhar nas águas. Os caloiros e os veteranos. Aqueles com seus penicos, estes com seus sorrisos. E faziam lá os baptismos, escolhiam nomes, faziam festas. O que vale no fim são as amizades que se cria, eis o propósito original e mais bonito das latadas: a integração dos mais velhos com os mais novos, os vínculos de amizade, a confraternização.
Tudo muito verdadeiro e por isso muito simples, muito leve e muito doce, como a vida deveria ser.

terça-feira, outubro 21, 2008

Ajuda-me a perceber

Há qualquer coisa a pairar sobre as casas da Alta de Coimbra.
Esse sítio tão especial onde eu moro e onde até os tijolos das casas sabem recitar poesia, do tanto que vêm ouvindo e testemunhando ser vivida no decorrer dos séculos, parece tomado por qualquer coisa boa que não se sabe bem o que é, ou ao menos alguns de seus moradores parecem bastante afectados por ela.
Um exemplo mais tangível desse evento, digamos assim, seria o das senhoras da rua da Matemática que sempre foram simpáticas comigo quando lá passo de manhã para ir à Universidade. Nesses últimos tempos, entretanto, tem sido mais que simpáticas. Andam a dizer-me: "Bom dia, lindo menino", e eu a responder sempre: "Bom dia, senhora. Então o gatito por onde anda?", digo pra disfarçar porque fico constrangido com elogios de estranhos, chego mesmo a não gostar e em muitos casos fico ofendido por saber que a pessoa não tem fundamento para ter aquela opinião, mas no caso dessas senhoras é capaz que me leiam nos olhos essa beleza nova que há em mim e que nem eu mesmo compreendo bem... daí não fico ofendido, mas não deixo de ficar surpreso com a perspicácia delas. Afinal devem ter aprendido com seus gatos ou vice-versa.
Todos aqui tem gatos... digo os residentes de facto, não os estudantes. Vivem os senhores idosos, casais ou irmãos solteiros, com seus gatos pelas pernas a pedir uma festinha a viver suas vidas simples à sombra da aparente ausência de casais novos e de crianças na vizinhança. Os pobres dos gatos devem fazer as vezes da pequenada no que toca às brincadeiras e à alegria.
Nunca vi uma só criança a correr pelas ladeiras da Alta ou a brincar por aqui. Hoje de manhã, entretanto, vi um infantário e fiquei bastante admirado, afinal existem crianças! Mas vivem bem escondidinhas, ninguém as vê. Passam despercebidas como eu achei que passava por entre a gente toda até ser descoberto pelas senhoras da rua da Matemática.
Qualquer coisa se passa na Alta de Coimbra.
Hoje já sei que há crianças e que há esperanças e que em meio a tanta poesia, Deus do céu... não pode haver medos e deve haver alguma coragem, pois o que somos e sentimos verdadeiramente comunica-se mesmo quando queremos estar calados.

quinta-feira, outubro 16, 2008

Galiza do meu coração

Estive na Galiza por alguns dias na semana passada e tive o prazer de conhecer Vigo e Santiago de Compostela. Que belo o país é aquele que, ao norte de Valença, parece entretanto ainda ser Portugal na língua, no trato e na beleza da gente.
Em Vigo cheguei já curioso de conhecer a baia e reimaginar as batalhas com os corsários que volta e meia tentavam saquear a cidade! Um cheirinho de mar para todo lado, o porto, a Praça da Pedra, a Rua do Príncipe, os Jardins de Portugal e o Parque Castro com sua vista estonteante para a baia... momentos docinhos e bons.
Levou-me o acaso até Santiago de Compostela, eu que era para ter ficado mais ao sul mas que sem querer quando dei por mim estava lá.
Na praça do Obradoiro conversei com os peregrinos que percorreram o Caminho de Santiago, a antiga rota de peregrinação da Idade Média cujo destino era aquela mágica cidade e sua catedral.
Gente com o coração pleno de esperança e fé, a contar suas estórias fantásticas, das curas que receberam, das dívidas que conseguiram pagar, dos amores que encontraram... E estavam todas lá para agradecer! Nada mais bonito que ser grato pelo bem que nos fazem... e assim, fiquei amigo dos peregrinos instantaneamente! Eu que tinha peregrinado da estação de comboio até a praça, não tendo feito assim grande esforço, mas que participei daquela beleza por também ter comigo esse sentimento de gratidão. Que Deus ilumine aquela boa gente.
Os galegos em si também, como dizer isso senão directamente, são pessoas doces e divertidas! Como foi boa a estada na residência universitária e os concertos no fim de semana, toda aquela boa gente, tão bem disposta a esvaziar seus copos da Estrella Galicia!
De volta a Coimbra, as lembranças da Galiza não me deixam um minuto sequer...
Maravilhoso acaso, desses que fazem a vida bela, deu-me a chance de conhecer a fabulosa Catedral, praças, ruas, largos, parques e jardins de Santiago... Em Vigo o doce encontro com o mar do norte e a vista da baía e do porto... uma terra feita de sonho, onde tudo guarda uma ordem perfeita e tudo tem bom aspecto, de uma doçura e brilho que engrandesse a Galiza e que fez-me imensa impressão e deixou no coração a vontade de um dia lá voltar.

quinta-feira, outubro 09, 2008

Pela grandeza de Portugal

As salas de aula da Faculdade de Direito de Coimbra são dignas de serem frequentadas por príncipes. A decoração manuelina de forte traço ainda barroco dão ao lugar um ar de opulência que é impossível negar. Os edifícios do complexo que se tem após a passagem pela Porta Férrea são em si a assumpção material dessa grandeza: generosidade nos espaços, sobriedade nas formas, silêncio austero a imperar pelos lados todos e no pátio o busto de um benfeitor. A faculdade de direito incorpora sua autoridade sem nenhum pudor: faz e acontece, manda e pode.

Já há muitos séculos a Faculdade de Direito de Coimbra vem servindo a Portugal e ao mundo através de sua excelência de ensino, congregação da elite intelectual portuguesa e distinta produção científica que muitos agradecimentos deve a paz social e Justiça portuguesas, européias e ocidentais.

Eu, que frequento há pouco tempo esse ambiente, mas partilho do pensamento que cá impera há muitos anos, tenho aprendido muito e ficado sempre surpreendido com essa grandeza. São inspiradoras e plenas de certeza na missão fundamental do Direito enquanto instrumento da Justiça, as aulas do Doutor Gomes Canotilho. Este senhor que é um dos maiores vultos do Constitucionalismo mundial mas que trata seus alunos com uma humildade e gentilza que por vezes falta aos mestrandos da faculdade... Com mais propósito, mesmo porque é da minha área de especialização, são as aulas de Direito das Sociedades do Doutor Coutinho de Abreu, plenas de uma inteligência e racioncínios afiados, um enfoque prático e desafios jurídicos que todo o tempo colocam-nos numa posição delicada, mas sempre voltada a provocar uma resposta relevante, um pensamento de valor, alguma produção que vá dar a volta nas trafulices amplas e necessárias que o legislador nos deixa para fazer aplicar, próprias da amplitude do Direito Privado. Isso para citar apenas dois docentes de um universo privilegiado em termos de recursos humanos.

Talvez por essa opulência toda, vinda do passado para dar num presente de prestígio e excelência, exista no ar um certo “não saber o que fazer ou como fazer” e um desconforto pelas mundanças que o futuro vem impondo, a dizer: o processo de Bolonha e o sistemático corte das verbas públicas para manutenção da Faculdade de Direito.

Trata-se, primeiramente, de uma insanidade mal planejada e mal feita e, no segundo caso, de uma imbecilidade que não merece mais aprofundamento que sua própria constatação.

O processo de Bolonha alinha-se com as demais políticas de sistematização comum que vem tomando corpo na União Européia. Pensou-se, muito impulsivamente talvez, que calharia bem dar à Europa toda um mesmo sistema universitário voltado marcadamente para a produção de mercado e que proporcionasse aos discentes uma oportunidade de experimentar activamente o ambiente do mercado de trabalho. Fica, desde já, a academia subordinada às necessidades do mercado de consumo, ela que nunca teve de abaixar a cabeça a ninguém, vê-se dobrada frente a essas incongruências.

Seguindo esta linha, quis-se trucidar a licenciatura e o mestrado, fazendo de ambos "ensino profissionalizante". Licenciatura voltada para produção de mercado e mestrado profissionalizante: mas daí pergunta-se: qual o propósito dos cursos de especialização latu-sensu?

Não houve debates com a comunidade universitária (que era quem afinal cabia mesmo opinar da relevância disso tudo), não houve período de adaptação e nem tampouco planejamento para implantação. Foi imposto, tal qual quer e faz um ditador, sem se importar com consquências.

O resultado recente dessas políticas tem devastado a Universidade de Coimbra. Não apenas na Facultade de Direito, como também na Faculdade de Medicina e muitas outras faculdades e departamentos. Impera o “não saber para onde ir”, uma confusão que aborrece e prejudica os alunos e professores: horários que não se definem, entumpimento do curso de mestrado, erros que não tem fim por parte dos serviços administrativos das faculdades...

Lado outro, como se não bastassem as irresponsáveis políticas comunitárias adoptadas sem a devida reflexão quanto à utilidade e necessidade, também temos os sistemáticos cortes orçamentários para a manutenção das universidades públicas.

Essa questão realmente não faz nenhum sentido. Afinal pretende-se cortar recursos às instituições responsáveis pela geração da mais importante mais valia nacional: os seus recursos humanos. São as pessoas que vão querer trabalhar por Portugal, fazê-lo maior e melhor, mais próspero e grandioso. São portanto as universidades portuguesas o lugar onde essas pessoas vão se formar enquanto profissionais de suas áreas e vão se animar a se empenhar em fazer cá suas vidas. Essa política orçamentária, entretanto, parece apontar para outra idéia: paga-se caro pelo ensino superior e em troca recebe-se o mínimo possível.

Enquanto até os anos de 1970 viu-se uma emigração para outros países da Europa e para o Brasil, feita mesmo pelas pessoas das aldeias e com pouca ou nenhuma instrução intelectual, hoje sofre o país outra onda de emigração: a da sua população educada. Vão-se todos procurar em França, Inglaterra, Alemanha ou Suíça os empregos que cá não encontram... Mas não precisava ser assim.

Mais que investimentos, para a grandeza de Portugal depende uma inabalável fé no seu destino manifesto, na sua força enquanto nação, na coragem de acreditar no país começando por primeiro acreditar em si mesmo!

Talvez seja preciso vermos um pouco os exemplos que nos dão o pessoal que está à frende da Faculdade de Direito: mesmo com todas as adversidades possíveis e imagináveis, mesmo rodeados de más perspectivas e de impiedosos lobos a salivar, não seriam nunca capazes de capitular às dificuldades: sabem que a verdadeira grandeza não sede, não perece e não diminue, mas resiste, regenera e renasce por ser quem é.

terça-feira, setembro 30, 2008

A morte dos irmãos

Estávamos os três a brincar no rio que corta as terras do nosso pai. Eu devia ter uns 12 anos, o Fernão 9 e a pequenita uns 7, acho eu. Havia ali uma alegria e uma camaradagem como poucas vezes desfrutei na vida e como todo sonho que se faz lembrar, havia uma irresistível sensação de realidade.
Quando era miúdo costumava pedir insistentemente à minha mãe para ter uma irmãzinha. Aquilo de sermos só eu e meu irmão não tinha muita piada e eu sabia que uma menina traria mais leveza e suavidade à nossa casa dominada por homens. A mãe, entretanto, nunca me fez a vontade que no sonho realizou-se.
Chamava-se Lúcia, ao menos assim a tratou meu irmão e a mim pareceu natural e doce a existência dela. Tinha o mesmo sorriso da tia Joana e os lindos olhos da minha mãe. Notava-se calma nos seus gestos e candura nos seus pedidos de desculpas pelas brincadeiras... Tomava conta deles naquele dia de calor, atento aos mergulhos do Fernão e às brincadeiras da menina junto à margem.
Eis que de repente, entretanto, quando estava a lhe ensinar a nadar o meu irmão, a menina foi apanhada por uma correnteza. Atrás foi o Fernão e eu também, muito concentrado, meti-me n'água atrás deles.
Procurei-os nas profundezas. Meus dedos tocavam as folhas apodrecidas no fundo do rio e à minha alma comunicava aquele lôdo amargo e frio.
Voltei à tona, pensei em pedir ajuda. Era já tarde... haviam se afogado os dois.
As órbitas dos meus olhos voltaram-se para o céu, o meu corpo molhado tremia enrijecido. O sentimento do luto, real e devastador, fez-me a mais miserável das criaturas e a idéia de tê-los perdido foi tão esmagadora que o meu coração morreu um pouco, como da vez que perdemos o tio Roberto...
Aquela linda menina tão genuinamente da nossa raça, tão inocente nos meus braços, fruto do meu desejo de afecto... Meu irmão, meu querido e doce irmão que eu amo tanto e por quem arrisquei a vida para proteger sem nunca medir as consequências... Foi este um pensamento de percepção fácil quanto ao seu viez de nunca mais e por isso mesmo impossível de suportar.
Como nunca me tinha acontecido na vida, rompi em pranto ainda a dormir e acordei muito perturbado, sem compreender que aquilo não era real e ainda chorei um pouco.
Rezei pela alma do meu tio que já se foi e a quem eu devo tanto... Rezei pelo bem estar do meu mano. Mas ninguém lá em casa vai saber desse sonho. Nunca souberam de nenhuma vez que eu chorei.

domingo, setembro 28, 2008

Um coração puro

Recordo hoje as velhas lições sobre as virtudes como um propósito de amor. Houve um tempo em que aquilo soava algo inconcistente, quando, pela própria imaturidade, os propósitos nos serviam e não nós a eles. Entretanto, pedíamos ao Pai Celestial com muita fé: "Crie em mim um coração puro, ó Deus".
Embora à primeira vista pareça um pedido simples, não consigo pensar em nada mais grandioso para se pedir, nada mais difícil de se alcançar, nada mais bonito.
Na simplicidade dos sorrisos, quantas palavras não podem ser salvas de um destino de desperdício e cansaço? Como os actos frente às declarações, a verdade da pureza é o que nós próprios somos e fazemos da vida, não nossos receios e ambições, menos as pesadas máscaras e as mentiras convenientes.
Vendo o Israel Kamakawiwo'ole tocando o seu pequenino ukelele de frente para o mar, com seu chapeuzinho para se proteger do sol, tem-se uma idéia desse grande, imenso valor da simplicidade.
Apenas um homem, como muitos outros mas que como poucos viveu sem medos, fiel ao que sentia e a quem o amava, cantando o amor ao Havaí, às suas tradições e essa simples condição da pureza que é capaz de nos fazer ser doces por dentro.
Lamentavelmente, o Israel morreu em 1997, aos 38 anos, devido a problemas respiratórios pela obesidade mórbida.
Em algum lugar para além do arco-íris habita o nosso sonho de viver em paz, sem ter de ferir e nem ser ferido, sem a arrogância, o despotismo e crueldade. Esse sim, o verdadeiro pote de ouro que lá se encontra.

domingo, setembro 21, 2008

Céu de outono

Acabou-se o verão, a estação do rubror de um sol violeta que queima as peles, das tardes a transpirar e das manhãs da infância. À essa excitação toda, sucede o profundo e misterioso outono.

Eu nasci no outono e andei pelos caminhos onde estavam caídas as folhas das árvores. Pude já perceber uma coisa ou duas a respeito da nova estação, que para mim chegou um bocadinho mais cedo este ano.

No começo do dia o outono amanhece para o mundo as suas manhãs de beleza discreta e despretensiosa, portadoras de possíveis segredos inocentes que cabe aos olhos encontrar e ao coração descodificar. A tarde é clara e simples, com muita luz e vez ou outra alguma chuva que serve mais ao tom reflexivo da estação do que para convidar para se estar por casa. Em tardes assim, há que se ter um café ao lado e um olhar de generosidade.

Quando o dia vai terminando, o outono mostra-se mais exuberante e toma posse de tudo. No horizonte, vai deixando um rastro de laranjado e rosa e uma paz imensa cai sobre as casas. Mesmo que por todo lado haja barulho de panelas, gatos a miar, gente a cantar, carros a passar e o diabo, no coração fala tão alto essa incorporação da beleza do mundo, que não ouço e nem vejo a mais nada, só a ela.

“Tu és um céu de outono, alegre e cor de rosa!”, diz o primeiro verso das “Intimidades” do nosso estimado Charles-Pierre. Parece-me difícil imaginar outra definição para esse céu já que, em si o verso traz a simples verdade da beleza robusta dele, sua completude discreta e que basta a si mesmo.

Eu leio nas entrelinhas de suas nuvens a mágica sugestão dos sentimentos. Fala-me dos espaços para além das camadas atmosféricas onde (tão alto!) faz habitar a fascinação do seu mistério e dá abrigo à sua própria intimidade.

Lá nas cimeiras do infinito, onde não podem tocar os meus braços e nem podem ver os meus olhos, passeia o meu pensamento reflexivo e apaixonado. Imerso na alegria e na cor rosada desse céu, percebe melhor a si mesmo através dele.

Feliz aniversário, céu de outono!

:)

quarta-feira, setembro 17, 2008

Para rir

Começa o ano lectivo na universidade, mas mesmo antes dele os problemas administrativos do semestre passado acordam das férias para atormentar alguns alunos.
Não foi outro o caso de uma futura colega do mestrado (espero eu e mais ainda ela mesma) que após concluir a licenciatura, fez candidatura condicionada para o 2º Ciclo, a qual só poderia ser confirmada com a apresentação da certidão de licenciada.
Pelas dinâmicas próprias da burocracia, mas mais directamente pelo desleixo de um dos seus professores do semestre passado, a tal certidão não seria nunca expedida. Explico: os serviços académicos só emitem a certidão de licenciado uma vez que tem todas as cadeiras no currículo com as notas assinadas pelos professores e esse um "esqueceu-se" de assinar a nota da minha colega. Resultado: nada de certidão e por conseguinte, nada de mestrado.
Peço desculpa por fazer descer à guela do leitor os pormenores burocráticos, mas é preciso para que o exacto ridículo da situação fique claro: por erro da faculdade na pessoa de um seu professor, uma candidatura ao mestrado seria negada e, muito pior que isso, o próprio futuro profissional da candidata comprometido em 1 ano pelo menos, já que com as modificações introduzidas pelo processo de Bolonha, não basta mais apenas a licenciatura, é preciso também uma especialização (mais 1 ano de estudos) para fazer os exames da Ordem dos Advogados. Resumindo a missa: um erro sério e imperdoável, na visão desse modesto homem de acção.
Muito bem, estando eu nos serviços académicos para tratar dos meus próprios assuntos, aproveitei a rara chance de questionar à Doutora Maria Benedita, encarregada dos mestrados, o que poderia ser feito nessa situação, para além de compelir fisicamente o professor a assinar a nota, e foi-me dito que juntasse o currículo da candidata onde constava a integração das cadeiras que poderia confirmar a matrícula, tendo, entretanto, de juntar a certidão até o início das aulas.
Como pareceu-me uma coisa simples (tão ingénuo o menino) resolvi ver se poderia adiantar alguma coisa eu mesmo já que estava de frente para o balcão onde se faz os pedidos de currículo.
Bravo e resoluto, após alguma espera a ouvir falar ao telefone o tal que me iria atender, expliquei com clareza didática o caso. O homem abriu no seu computador o currículo da candidata e já estava tudo pronto para que o imprimisse e eu entregasse o documento na outra mesa quando, por razões que nem a fé pode explicar, questionou qual seria a cadeira que faltava o relatório da nota assinada... Eu não tinha tido a indiscrição de perguntar (já agora percebem que chamei desleixado a um professor que nem sei quem é, mas sei como trata os seus relatórios de notas). Não percebi a importância aquilo, já que o senhor tinha visto que o interesse era apanhar o currículo ali e deixar no balcão dos mestrados, onde a senhorazinha que ali atendia iria cuidar muito bem de dar baixa na anulabilidade da candidatura e resolver todo o problema... Mas não viu dessa maneira o senhor: juntou-se nessa de querer ver qual era a cadeira e como eu realmente não sabia, não pude fazer muito mais que isso.
Depois disse à minha colega qual era a providência a tomar e ela mesma fez o dito, que esperamos que baste.
Da situação toda, entretanto, para além da raiva do momento, serviu para ver que como se não bastasse a falta de organização, falta também o senso do ridículo a alguns funcionários públicos. É mesmo para rir.

terça-feira, setembro 09, 2008

A tua vida

Danae, Klimt

Canção para a amiga dormindo


Dorme, amiga, dorme
Teu sono de rosa
Uma paz imensa
Desceu nesta hora.
Cerra bem as pétalas
Do teu corpo imóvel
E pede ao silêncio
Que não vá embora.

Dorme, amiga, o sono
Teu de menininha
Minha vida é a tua
Tua morte é a minha.
Dorme e me procura
Na ausente paisagem...
Nela a minha imagem
Restará mais pura.

Dorme, minha amada
Teu sono de estrela
Nossa morte, nada
Poderá detê-la.

Mas dorme, que assim
Dormirás um dia
De um sono sem fim...
Na minha poesia.



Amanhece na capital portuguesa. Vem o sol iluminar a antiga terra banhada pelo rio Tejo e lançar as primeiras luzes sobre a residência universitária da Universidade Clássica.

Lá dentro tu habitas junto da tua consciência de estar no mundo, tuas partituras, teu lindo amor a queimar ponderadamente.

Teus óculos e teus olhos, teus cachos e tuas mãos, teus livros. Tu a ter deles e eles a ter de ti. A manhã, a tarde, a noite. A rotina dos cuidados de higiene, com o quarto, com a casa. O comer a ser feito por essas mesmas mãos, a loiça a ser lavada, a vista da janela a ser admirada num instante de contemplação das coisas do mundo. Dentro e fora um incomensurável silêncio.

Quando eu olho o horizonte da minha janela e presto bastante atenção nas cores do céu, na velocidade do vento, no cheiro do ar, eu percebo a tua presença em todas as coisas da minha vida. Tens em ti tão fortemente marcado o gênio da determinação, da força, da grandeza que se merece, que o meu sorriso vai para ti de uma maneira original e generosa, sempre, sempre...

O cancro do pai, a insensatez da irmã, o abatimento da mãe, nada disso te consome, embora não negues a reponsabilidade que tens sobre as costas. Tal como Atlas, tu não sedes e justamente por isso o mundo não cai. Compreendes, consolas, apóias. Nunca te queixaste. Nunca maldisseste ao destino, a Deus, nunca culpaste aos outros. Em todas as tuas acções há virtudes e há pureza em todas as tuas intenções, há uma beleza indescritível nos teus olhos.

Por tudo isso, pela tua lealdade, pelo teu brio, fibra e nobreza, o meu respeito e incondicional amor.

quinta-feira, setembro 04, 2008

Corre sangria nas minhas veias

Eu achei piada quando ouvi que os arcos que ficam entre o Instituto de Botânica e a Junta de Freguesia da Sé Nova eram parte do sistema de aquedutos de Salazar... Claro que eram um bocado mais antigos, mas não tinha me atrevido a considerar que vinham da ocupação romana... pois a verdade é que são tão romanos quanto nossa herança de opressão e vaidade e nosso alfabeto latino.
A história de Coimbra é tão cheia de pormenores, que passenado ali pelos arcos romanos, reparei uma bizarrice que no final das contas tinha lá sua surpreendente razão de ser.
Bem às costas da estátua do sto. padre João Paulo II, no alto dos arcos, há uma outra imagem que a princípio não pude ver bem de quem era.
Estando ao pé da Junta de Freguesia e sabedor do vasto conhecimento em termos de história coimbrã que o seu presidente possui, fui lá ter sem nenhum outro pretexto.
Após uma espera de menos de 2 minutos, o gentil senhor que já me conhece pelo primeiro nome elogiou a "perspicaz" observação e informou que a tal imagem era de São Sebastião. Isso eu bem achei que era, afinal não faltam aos olhos da imagem uma infinita expressão de dor e resignação.
Entretanto, eu logo interpus objecção: Mas então onde estão as setas?
"Bem, jovem mancebo, houve uma noite de inverno em que o frio era muito e o vento soprava suas tramadas rajadas de desconsolo. Desciam da universidade, entretanto, muitos capas-pretas com as bochechas vermelhas, traziam guitarras e de certeza eram lá alguma tuna que tinha acabado de se apresentar.
A odiosa imagem da dor que o pobre São Sebastição devia estar a sentir naquela fria noite ventosa e ainda todo espetado de setas, veio à mente de algum deles que convocou os outros.
Treparam para cima dos arcos e depois de alcançarem o santo, arrancaram-lhe as setas.
Desde esse dia, ninguém ousou restituí-las e não se sabe mesmo de nenhum outro São Sebastião que não tenha setas atravessadas ao corpo, que não o de Coimbra.
Antes de descerem, os estudantes deixaram pendurada uma placa com os dizeres: "Basta de tanto sofrer."

quinta-feira, agosto 28, 2008

Corações rotos

The raccoon - Calvin & Hobbes

Lá do céu a lua nos acompanhava pelas ruas durante aquele consentido regresso à Alta, pleno das ruas vazias neste valente mês de Agosto das férias universitárias.
Íamos curiosos e curiosa nos acompanhava a lua. Nas bordas dos olhos uns horizontes novos e nos dedos um enlace frágil e sem segredos.
Lembrei-me das minhas longas noites em West End e o quanto daquela devassidão encontrava algum sentido no meu espírito apaixonado. As meninas inglesas com seus gestos exagerados e cheias daquela sagacidade encantadora delas, a ingenuidade dos turistas desprevenidos ao hábito inglês de beber-se sempre ao exagero, a querida condição dos estrangeiros não se sentirem assim tão estranhos. Havia um denominador comum naquilo tudo e havia um encanto próprio daquelas ruas e daquela gente, um subtil comprometimento com a vida.
Subitamente um sorriso lançava aquilo de volta aos meus olhos e eu quis sempre poder crer na esperança e no brilho dos olhos, mas a lua estava tão linda... O silêncio e a madrugada encontraram de novo espaço em mim e só apetecia estar sozinho a olha-la. Ninguém mais poderia compreender aquilo, ninguém poderia perceber que a lua ali a olhar por mim falava-me numa língua esquecida das rotas madeixas dos sonhos e das esperanças dos que foram perdoados, a perguntar-me por onde eu tinha andado todo esse tempo...
Assim levei-te até a porta de casa e sorri sem mais nada ter para dar além de um alívio algo inesperado por estar algo como... livre para o meu encontro lunar.

quarta-feira, agosto 20, 2008

Dois tons de castanho

A impressão de que estou em Ouro Preto é constante aqui em Coimbra. É claro que essa mítica cidade universitária é um bocado mais antiga, mas os morros, o clima de revolta dos estudantes e mesmo o calor (escusado esteja o sol de agosto, no dizer de Sá Carneiro), aproximam-nas um bocado e assim sinto-me um pouquinho menos estrangeiro e menos só no mundo.
Abraçam-me as antigas lembranças de Ouro Preto, na doce companhia dos amigos, quando despreocupados e com o peito aceso, íamos pelos palácios e igrejas a pensar em como tirar o melhor proveito da próxima hora.
Foi em Ouro Preto que Patrícia mostrou-me o sinuoso e inebriante caminho de uma paixão ponderada mas nem por isso menor. Ainda lembro da minha cara de curiosidade ao ver aquilo tudo e tentar colocar num formato mínimo, sem nenhum sucesso e depois aceitar a verdade de que as ruas antigas sempre pedem mais esforços aos nossos corações... Linda amiga, como fomos felizes então...
Não foram outros senão os olhos de Raquel os que refletiram as estrelas do céu de Ouro Preto com total despudor de brilhar mais que elas.
Os prismas misteriosos de estar onde se quer estar e com quem se quer estar e prender-se à madrugada para que ela não mais se vá e se esgueirar pelos muros como os gatos para espreitar nos quintais o segredo desse amor mineiro que no recesso dos lares ainda existe como no princípio.
Ladeiras douradas de tempo, um céu antigo que sobre nossas cabeças não nos compreende... Essas ruelas estreitas que causam aflição e e que eu queria tanto poder alargar com os meus braços só para que o meu coração não tivesse de passar por elas tão apertado!
Ouro Preto reencontrada em Coimbra... depois de tantos anos, são sentimentos novos novamente.

domingo, julho 06, 2008

Para dentro da luz da escura noite negra

De longe eu os vi indisfarçadamente a saltar aos olhos. Um casalzinho nos seus 14 ou 15 anos, deitados na grama do St. James Park, a contemplar um ao outro em meio a pequenas brincadeiras.
Não me viram, nem viram a ninguém que lá estava, pelo que me parece. Tinham os olhos um para o outro e o resto do mundo era uma casual moldura ao rosto da pessoa amada.
Eram certamente ingleses, certamente londrinos, isso pelos penteados, roupas e pelo sotaque mais metropolitano. A moça com um rabo de cavalo e a franja presa para trás. O rapazinho com o cabeço raspado como o do David Beckham. Ela com aquelas sapatilhas pretas rasas, calças colantes e uma blusinha azul com alça delicada. O rapaz com calça jeans preta bem justa, sapatilhas e uma camisa de marca esportiva.
Imagina toda esssa descrição coladinha, misturada, tão juntos que estavam, embora os momentos mais doces fossem quando falavam, havia muito cuidado com as palavras, esse sábio e primordial hábito inglês que costuma lhes evitar tantos problemas e que nós latinos ignoramos orgulhosamente.
Não faziam declarações de amor, entretanto. Eram coisinhas mais simples, sobre música ou amigos, qualquer contexto em que pudessem, timidamente, deixar subentender que gostavam um do outro.
Que coragem que têm eles - pensei comigo. A entrar assim, com um parque aos pés para lhes testemunhar, nessa seara do sonho e da incerteza que embora comece com caminhos simples, por vezes exige muito mais de nós.
Pensei se aquelas primeiras impressões um do outro restariam imaculadas ou iriam com os dias passar a ser algo mais real. Se a voz manteria aquele tom doce e harmônico ao perguntar e responder. Se saberiam sempre dizer as coisas sem ferir e se, mais que tudo, mais que receber, aprenderiam essa misteriosa e generosa feição do amor que é o dar de si.
Embora pareça um parque no verão, cheio de turistas espanhóis e cisnes reais, é mais real vê-lo como a porta para uma selva escura que se tem de atravessar de mãos dadas, um caminho para ser feito a dois, um a apoiar e acreditar no outro, a amarem-se muito e incondicionalmente, talvez assim consigam ver para além disso a mais bela das coisas que lhes espera do outro lado: a espiritualização de toda aquela matéria, a vez em que o parque, a luz, os cheiros e impressões vão estar presentes em cada um tão fortemente que não importa onde estejam, nem como... serão parte um do outro.
Começaram belissimamente bem nessa doce tarde de verão, com lindos vislumbres da luz a mostrar-lhes o caminho.

quinta-feira, junho 26, 2008

Meridiano

Greenwich é um dos bairros de Londres, um bairro muito bonito, por sinal, mas o local é mesmo conhecido mundo afora por ter dado nome à linha que corta o globo longitudinalmente e o divide em duas partes: leste e oeste.
Estabelecido por Sir George Biddell Airy em 1851 e aceito internacionalmente a partir de 1884, sempre tinha me feito impressão o motivo pelo qual aquele lugar e não qualquer outro no mundo, tinha sido escolhido para ser o ponto zero da longitude do mundo. Se lembrarmos, entretanto, que na altura em tais estudos de coordenadas geográficas foram feitos, o centro cultural, econômico e científico do mundo era aqui na capital do Reino Unido, essa estranheza deixa logo de existir.
Ontem estive a passear por lá pela primeira vez. Como turista na cidade onde moro já há algum tempo, não podia deixar de ir visitar o lugar.
A vizinhança de Greenwich é muito bonita e alegre. As casas parecem mais coloridas e certamente há mais crianças que noutras regiões de Londres, devo ter contado no mínimo uns 30 carrinhos de bebê em algo como uma hora e meia. Talvez tenha contribuído para o número o fato de ter atravessado o parque que guarda o observatório e que o mesmo é maravilhosamente florido, daí já não me surpreenderia pela natural ligação dos bebês e das flores, pois coisas belas costumam estar juntas.
Envolto nessa atmosfera, o velho observatório astronômico de Greenwich, onde consta bem a linha que divide o mundo e as longitudes e latitudes de várias capitais, ainda guarda muito da sua original feição: parece que se pode ler nas paredes a certeza e a precisão das distâncias e das localizações, como se fosse uma liberdade ao grande medo de peder-se, afirma-se sutilmente que estamos agora num mundo onde todos os centímetros são cuidadosamente medidos e pode se saber a localização de qualquer coisa com o mero ajuntamento do correto par de graus latitudinais e longitudinais. Especialmente para os fins militares, é capaz que tal seja mesmo muito útil e até para uma questão de orientação espacial quando se faz uma excursão por um lugar remoto, mas ressalvados esses e outros casos correlatos, parece-me de uma aplicação restrita.
Imagine-se, entretanto, se fosse possível meter coordenadas no que se sente e pensa. Essa talvez fosse uma idéia que tivesse maior apelo e é possível que muitos se interessassem em saber por onde anda a caridade, o amor, a consciência, o respeito das pessoas em geral ou mesmo de quem se ama.
"Meu amor está na latitude 33º, longitude 21º" e pronto, era ir para esse lugar dentro de si e poder encontrar o sentimento. Certamente, o centro internacional do meridiano de si mesmo devia ser o coração. A partir dele, uma linha imaginária a dividir-nos pela metade para que fóssemos demarcados e em nós se pudesse achar tudo o que de mais precioso existe, mas que tantas vezes é difícil encontrar.
A contemplar tantas possibilidades, com o pensamento leve e ponderado, equilibrei-me como quem anda numa corda bamba enquanto andava sobre a linha que divide o mundo.

domingo, junho 15, 2008

A piscina

Depois de muito tempo encontrei a foto em que está um primo meu e eu na piscina na quinta do tio Max, na altura em que éramos meninos ainda. Atrás, as palavras "os mergulhadores".
Quando chegavam as férias do final do ano, chegava também a época de ir para lá cultivar os bons hábitos da infância tardia que espertamente não quer se despedir. Fazíamos uma boa refeição de manhã e , com a bola de futebol debaixo do braço, rumávamos para lá, para o resto do dia as refeições eram no pomar, sempre visitado entre uma atividade e outra.
Dias havia que nos dedicávamos à caça, outros para explorar as antigas casas de colonos, outros para o três-troques no futebol, mas quando fazia mesmo calor, eram dias na piscina.
Não me lembro mais das dimensões, mas podia-se nadar livremente uma boa distância, ao menos em termos de braçadas de menino. Na parte mais funda devia contar com pouco mais de 3 metros e na mais rasa eu, com algo como um metro e meio, dava-me pé facilmente.
Muitas vezes nadávamos na piscina como os gladiadores lutavam nas arenas: uma cerrada competição, seja para ver quem tinha mais fôlego, seja para ver quem nadava mais rápido, mas de todas as disputas, minha favorita era o mergulho. Numa das modalidades que eu mais gostava, ficávamos de costas para a piscina e ao mesmo tempo jogávamos uma moeda dentro d'água: quem trouxesse a moeda do outro primeiro ganhava. Noutra modalidade, valia mais o movimento do mergulho: tomava distância e, tendo em conta um degrau bem antes da quina, media bem os metros para o impulso, o salto e a entrada na água, a força com que me jogava para o impulso através da água para vir à tona bem mais à frente.
Por vezes quando nado no centro de esportes da City University fico a lembrar daquelas tardes de verão e daquele tenaz mergulhador que não admitia jamais vir a tona sem a moeda do adversário: sorri-me sempre cheio de camaradagem quando o procuro no espelho.

sexta-feira, maio 16, 2008

Memória


Por esse tempo em que tenho estado ausente do país, parece-me que as coisas ficam ainda mais distantes. Como um míope que tenta ver ao longe, eu aperto os olhos mas sem conseguir discernir claramente o que lá está, como estão os que ficaram pra trás.
Sem poder ver, eu sinto. Chegam em ondas eletromagnéticas do telefone, chegam por mensagens eletrònicas, chegam pelos jornais e também pelos silêncios meus e deles.
Varre o vento dos dias de dentro de nós partes do que fomos, deixa-nos menores e essa embaraçosa nudez nos ruboriza mais quando os olhos alheios nos encontram.
Talvez por ser uma idéia demasiado penosa, não costumo me deixar desfazer ao tempo, levo todos comigo. Vivem assim junto de mim numa proximidade que não poderiam imaginar. Queridos amigos meus, do doce convívio que por uma etapa da vida tivemos há esse conforto de saber com quem se lida, com quem se vai e onde se vai chegar. Como quando me confiaram a vida, o carro, os pensamentos íntimos, a amizade e dessa honra forjada no respeito que eu senti por eles, recebem a minha lealdade.
Essas lembranças que vagam, entretanto, cobram seu pedágio à saudade e por vezes fere lentamente, algumas vezes passa, outras visita-me e perguntam que se passa, como foi o dia, que se faz no fim de semana, para o mês. Eu respondo assim na língua das lembranças distantes e revivo no pensamento os momentos que tivemos juntos, rendendo-lhes essa pueril e anônima homenagem e mantenho-os, ao menos do meu lado e dessa pobre maneira, meus amigos.
Claro que há amigos novos, boa gente que tenho alegria pelo convívio, mas como cada pessoa é única, não se pode exigir que sejam como são outros ou mesmo que tenhamos a mesma camaradagem que é feita de muitos anos e muitas experiências partilhadas.
Assim, my old mates, guardem consigo a lembrança fiel desse aqui que em vocês empenha o coração e que está à disposição para o que der e vier, como sempre.

quinta-feira, março 06, 2008

Sou aquilo que se vê

The toilet of Venus, Diego Velázquez, The National Gallery

A força que se esconde no aspecto das coisas fala também às pessoas as suas silenciosas palavras. Diz do que pode ser, especula. Uns ouvem a essa voz e admiram-se com formidáveis olhinhos de fome a miserável condição humana que tem, essas cenas de amor, de esperança, de confiança, de respeito à fluida parte de nós que podemos tocar com as mãos e que ocupa com covardia a grande parte dos nossos pensamentos.
Um visível cansaço apoderou-se desses olhos frente ao espelho, olhos vindos de ver a maldade e o triunfo dos impulsos estúpidos, agora mais voltados para si mesmo, agora a ver para além das retinas e dos tempos da vida e a baixar quase que com constrangimento, envergonhado pelos outros.
No vale secreto das montanhas, lá onde eu nasci, no frio do momento prestes à aurora, onde o nevoeiro está a desfazer-se e a intimidade ganha contornos de ser abraçada e vibrar com entusiasmo, lá é que eu vivo inteiramente, nesse mero instante.
Celebra no segredo desse recanto, a paz de não haver expectativas a cumprir, de não fazer ninguém sofrer, de não ter que ser agressivo ou permissivo, de não ter que amar. E há tanta compreensão, há tanta comtemplação desse mistério de Deus, que era de bom proveito extender esse instante do dia para sempre, não fossem as correntes que trago no pescoço e as estacas que me espetam o coração e me reduzem a um escravo de paixões e ambições vãs.
Assim resta-me conversar com esse mal aspecto das coisas aparentemente belas, tentar levar com bom humor essas tretas todas e ter uma infinita paciência com toda gente, ou ao menos com os que merecem.

domingo, fevereiro 17, 2008

Leãozinho

Chrisa de Jaime Valero Perandones, National Portrait Gallery, Londres


Ardem os olhos, avisa o corpo que basta, que é preciso dormir mais, que é preciso querer menos, que para ele não é preciso, mas o coração não quer saber dessas estórias e segue sempre inflexível nas suas ordens.


Encontra beleza nessas doces manhãs de sol e frio que a capital tem tido no início do ano e anima-se com a primeira brisa fria inspirada da saída da estação: viva a vida.


Começos e finais, horas a passar. Tamborilar de dedos, pensamentos a bater estupidamente sem nenhum retorno, reconhecimento do absurso e pior, secreto anseio da realização do absurdo. Irrepreensível amor à beleza e um ingênuo fascínio pela doçura dos sorrisos recebidos.


Esforços dedicados, telefonemas que ficaram por serem feitos, palavras que morreram no meio termo das intenções. Frustrações e alguns acertos.


Mas existes. Trazes contigo esperança, bolinhos para um piquenique e montes de olhares docinhos e beijos de amor.


Existes assim na inteireza de alma, nos teus sonhos secretos, nas tuas fantasias românticas, nas pequenas e gentis palavras que comunicam teu nome. Existes em mim.


Como os pássaros que planam calados para manchar o céu sem muitas outras pretensões, impõe-te ao horizonte diante dos meus olhos, estás à minha frente, pedes para comer do meu corpo e parar beber do meu sangue, pedes para vestir minha pele e para ver com meus olhos e eu, miseravelmente, dou tudo que tenho.


Calmamente tenho a marca dos meus sorrisos no rosto e percebo o esmorecer da cor dos meus olhos. Este impulso de vida que gasto com tanto prazer serve-me melhor à realização do delírio que o amor propõe através de ti e que tão orgulhosamente eu aceitei sem exitar.


Dá o teu abraço, pequenina! Agarra-te a mim e não me deixes ir antes de tomar um café fresco e predizer como será amanhã, das cores que virão do céu e do cheiro apaixonante a desprender-se da nossa pele.


Como os navios nos portos silenciosos eu vejo assentar-se a madrugada e do segredo da minha solidão insuspeitada, queima incondicionalmente o meu coração.

terça-feira, janeiro 29, 2008

Participação da poesia

Café a esfumaçar, manhã de sol, as portas se fecham atrás dos milhões de pessoas que vão trabalhar nessa vibrande capital onde os sonhos se realizam.
Atrás de mim também fechou-se uma porta. Dentro do meu casaco segui pela minha rua, depois pela minha high street até a estação onde, por debaixo da terra, o trem me levou para Central London.
A multidão em Oxford Circus me adota, tomo parte no caudaloso rio que toma toda a calçada... sérias as pessoas, talvez já a meditar sobre as tarefas do dia, a maneira como dizer as coisas, talvez a confabular mentiras, talvez a ordenar interesses, acho que uns poucos conseguem se distrair para respirar o generoso ar fresco ou admirar o bonito brilho do sol sobre a cidade, algo especialmente raro nessa altura do ano. Também eu desprezo inconcientemente essas doses de beleza e meto-me dentro de mim absurdamente concentrado.
Eis que toca o telefone. Eis que vem uma voz que coloca-me de novo no mundo, brutalmente de face para o ridículo das coisas, timidamente a sorrir para o desconhecido.
"Correu bem a formatura, obrigado pela lembrança" Pois lembrei-me da data e parabenizei o formando em questão, algo assim como que há três semanas...
Que crueldade lembrar do pessoal de lá sem poder tar com eles nos lugares de costume, sem a nossa cidade, sem os nossos teatros, praças, bares, sem nós todos!
Minhas novas estações de metrô, praças com luminosos, ruas magicamente curvadas e colunas monumentais apenas palidamente compensam essas ausências que assaltam tão covardemente.
Tenho bilhete para ir ao Brasil amanhã, mas não vou, meu lugar vai vazio para algum sortudo esticar-se mais durante as 10 ou 12 horas de viagem para atravessar o oceano Atlântico.
Esses minutos contados a ouvir aquela boa voz amiga, entretanto, calaram-me demais e eu chorei mesmo que o frio e a compostura não me deixassem ter lágrimas.
Amigos queridos, há aqui alguém que é por vocês, mesmo quando parece que não lhes liga nenhuma. Cuidem do nosso país por mim e venham cá visitar quando puderem!

sábado, janeiro 26, 2008

Fragmento da pureza

Foi assim como um desses lampejos que cortam o coração quando se sente que está a sofrer um infarto: gritou-se na rua um apelo por libertade, toda a gente que lá estava deve ter percebido como foi doído, como percorreu a espinha a cortar, aquele pranto...
Imaginei donde viera, tentei refazer os caminhos por onde o mal seguir para talhar naquela cara tal expressão de horror, como deveria já vir sendo violentado por algum tempo, como tinha vincos marcados, e cicatrizes vermelhas onde abaixo pulsava seu sangue pleno dos seus sentimentos fortes, da sua cólera e da sua ira.
Abaixei o olhar ao meu colo, em seguida levantei às nuvens... que lindo céu para lançar engimas! Pudera a vida ser esse patético jogo de más certezas e dúvidas jeitosas para nos fazer ir por ela como imbecis bem recompensados por instantes pequenos de alegria, quando a parca parcela do que é prazeroso e feliz nos é dado parcimonicamente a fim de não esgotar a pobreza da garrafa onde é guardada.
Esvaziou-se a rua. Cada um que lá estava, que viu e sentiu tudo aquilo, tomou diferentes direções: à rua da indiferença foram muitos para distrair-se com alguma tolice engraçada, à rua da balbúrdia foram os que acharam bonito e quiseram continuar a fuzarca, porém sem o mesmo coração e alma nos gritos, à rua do lamento seguiram uns tantos mais decididos que queriam reclamar das coisas e conseguir algo com as queixas: pobres criaturas de Deus!
Eu, cá pleno deste horizonte sem fim que tenho em frente aos olhos, de coração quis passar a faca em todos, um desses desejos encolerados que temos quando não sobra mais paciência e é ultrajada a última barreira de tolerança, quando mesmo metem-nos o pé na dignidade. Pois uma morte por lâmina era o que mereciam os covardes. Esses uns que fazem sangrar a liberdade, esses canalhas que sorriem e querem parecer eficientes, os patéticos títeres da monotonia, da falta de alma das coisas, da monocromacia do mundo. Eis seus mais aplicados agentes, esses maus gestores do humor alheio.
Pude vê-lo ainda a respingar da roupa a sua ira, a sumir como um vento forte passa e depois dele não sopra mais nada, nem brisa mansa, nem o contínuo soprar mais forte, cessa tudo.
Pois na minha cara esse vento trouxe tudo o que tinha se proposto trazer e mesmo depois de ir, deixou marcada a sua mensagem de inconformismo. Há mesmo que ser assim, sem nenhuma tolerância com essa gente feia.

sábado, novembro 24, 2007

Piccadilly Circus e eu

Embora ainda houvesse gente na rua, embora os painéis continuassem a brilhar as animações dos produtos mais bacanas, embora tudo parecesse apontar para uma madrugada usual, Piccadilly Circus, já a mais de um ano o lar das minhas noites insones, mostrou-me num relance de pensamento onde Eros foi mandar sua flecha.
Ar frio que conheço e que tempera, o calor do rosto de expressão impassível: quanto frescor para se respirar! Fomos juntos, a fria brisa e eu, a vagar mais anônimos ao caminho do ponto de autocarro. No caminho, um rapaz despojado sentava-se numa cadeira de escritório enquanto três garotas italianas, todas flagrantemente bêbadas, falavam dos flertes da noite e brincavam animadamente umas com as outras. Havia junto de mim também um grupo de adolescentes de comportamento anti-social a fazer mais barulho que o necessário e trabalhadores com suas mochilas, encostados junto à fachada da Patisserie da Regent Street. Nenhum deles percebeu o meu estado.
Chego a casa e o céu do noroeste de Londres, sempre a lembrar o de Juiz de Fora, alaranjou delicadamente e este extremo amor que me comanda fez-se matéria sobre o meu corpo e tive a imediata certeza que qualquer um que me visse notaria esse sentimento nos meus olhos confiantes.
Num instante, toda mágoa e todo sofrimento se disolveram com os beijos que ganhei no meu sonho e foi sorrindo que a linda face da minha namorada aproximou-se para dar mimos.
O sonho a comandar a vida, a vida a seguir sua obediente condição de percurso e essas avenidas preparadas a se encher da expectativa dos dias do fim do ano quando ficará a ilha sem mim por uns dias a fim de que possa visitar o país que Fernando Pessoa chamou de "o rosto que contempla".
Outra coisa não poderia vir ao pensamento quando a vista do quarto evocava essa coragem, essa certeza, essa maneira de encantar o mundo que a princesa me ensinou sem perceber: contemplar a grandeza da liberdade e ver para além das casas vitorianas e dos pinheiros quietos, o horizonte distante que quer-se tanto: "Com razão, sem razão/como é preciso/que andes por onde estás".
Assim, procurei a cama meio tonto desta plenitude de vida, dediquei o último pensamento a ela e adormeci.

quarta-feira, outubro 10, 2007

Parque Secreto

Foi assim a tarde no parque: junto do vento constante o cheiro dos cabelos, vi a luz do sol a deitar-se devagar sobre a gente. Encampei no meu coração a empreitada de esconder-me entre as árvores, buscar com os esquilos o de comer e não voltar nunca mais para junto das ruas e do concreto, quis naquele minuto viver do meu amor e curtir o sorriso do meu amor como minha lembrança cristalizada do mais bonito que podia haver e depois disso nunca mais buscar nada.
Havia sobre as cabeças um azul malhado de branco céu cheio de ambições, como um teto que não é alto o suficiente e por vezes abraço-te e andamos curvados até a saída.
Foi assim junto do memorial do Príncipe Albert. Estavam lá nas escadas os velhinhos a aguardar a abertura das portas para o próximo espetáculo, todos guardados pelo olhar do consorte dourado do alto de seu trono. Descansamos, respiramos fundo, comemos morangos! Ao toque dos dedos pareceu-me o brilho dourado vir antes doutro lado e foram-se a grande indiferença e a dureza para darem lugar ao úmido apreço pelas mãos queridas, pelos beijos ansiados, pelos risos mais sonoros.
Veio uma estrela no fim da tarde e deixou-me no colo a solidão. Agarrei-a com as duas mãos e ao trazê-la junto ao peito abracei-a forte e queimei-me e tanto mais quanto feria-me a pele, tanto mais apertava até que, com o frio da noite já assentada, foi-se de mim num suspiro apaixonado.
Eu caí pelo lado, tonto a sorrir ao esquilo curioso, que desceu da árvore pra examinar aquela doce figura que eu fazia ali.
Pisquei o olho direito ao bichinho que, muito amistoso, deu boas vindas ao novo vizinho com um franzir de bigodes.

sábado, agosto 25, 2007

Não sonho mais

Estavamos, um colega que tambem trabalha no Museu de Ciencia e eu, quase a chegar a entrada do caminho subterraneo para a estacao de South Kensington quando fomos parados por um casal com sua penca de filhos para dar-lhes informacoes.
'Onde e' o Museu de Ciencia?' -E' esse predio aqui a sua direita, senhor. 'Oh, realmente!' dizia constrangido enquanto o pequenito se escondia atras de sua perna e ria pra mim como a desafiar-me e eu de volta, ria ao puto com uma simpatia que nao dou a toda gente.
Seguiram o seu caminho e tambem nos seguimos o nosso, mas por todo dia nao segui senao com aquela imagem no pensamento, afinal aquela suavidade arrancou-me pra fora das coisas praticas e de novo podia tocar as coisas sem que fosse com as maos e que beleza nao pude ver descrita no dia de sol e vento cheiroso que tivemos hoje.
Ganhou mais tempo a minha ponderacao e num minuto pareceu tolo considerar, considerar, considerar para afinal fazer a coisa errada, faco o que faria aquele puto, eu sorriria cheio de confianca em mim mesmo, a esperar que nao houvesse razao melhor que a grande generosidade do meu coracao.
Assim aturei muito bem o grupo barulhento de estudantes espanhois que infestou a galeria da navegacao espacial e com grande polidez pedi a um senhor alterado que moderasse sua voz ao corrigir o filho e ainda consegui ir alem e surpreendi-me a mim mesmo: dei ate' conselhos sentimentais ao bem bom Johnathan! Afinal que tipo de namorada se recusa a preparar o jantar a um homem dedicado como ele? A que nao se importa... e e' pra gente que nao se importa que foram feitas as guilhotinas: off with her head!
Tambem eu ca' no meu encontro como o menino sorridente decidi num rompante: 'da' ca' um beijo, amor, lembra que eu te amo, que eu nao sonho mais!'

sábado, agosto 04, 2007

Submersão sentimental

As grandes cidades do mundo talvez deem-se as maos nessa grande angustia do desconhecimento, um desconhecer que nao e' propriamente ignorancia, e' um facto da vida.
Desconhecem-se uns aos outros, desconhecem os caminhos inabituais, desconhecem, por pior que pareca, a si mesmos.
Vivemos aqui juntos, 7 milhoes de londrinos, sob a constante sugestao do prefeito da cidade para que passemos a andar de bicicleta e abandonemos os carros e o metro, achando piada do quanto o novo primeiro ministro bajula os americanos enquanto esnoba os franceses e alemaes... a espreita de algum arabe com olhos arregalados que queira explodir a si mesmo e a tantos quantos estiverem proximos a si, com essa estranha e curiosa pre-disposicao para apreciar humor negro e sarcasmo, com esse despeito pelos dias de sol e os grandes sorrisos com os copos de cerveja de 600 ml nas maos do lado de fora dos pubs a partir das 5 da tarde.
Curto imensamente o modo de vida dos britanicos, especialmente a sua capacidade de serem gentis sem que com isso significar que se importam, nem por isso... e' uma gentileza de estirpe, nao que significa respeito pela outra pessoa. Agrada-me o bom gosto no vestir, especialmente dos homens e das mulheres com mais de 25 anos... as mais novinhas vestem-se como as americanas e portanto, vestem-se como macacas de circo que vao andar naqueles triciclos pequeninos, com grandes bandanas de bolinhas na cabeca e calcas colantes sob as saias... nao chega a perturbar o ambiente de todo. E' bom tomar cerveja para acompanhar o file' de peixe frito e as batatas fritas, o prato nacional por excelencia, e gastar as preguicosas tardes de domingo com os amigos num pub aconchegante e belo como todos os pubs tradicionais sao.
Tanta imersao cultural e eu assim tao submergido, entre o antes e o agora e o depois, esse lapso tonto de acordar 'a tarde com a sensacao que perdeu-se um compromisso... mas nao ha' nada, ficou so' a sensacao e umas saudades com olhinhos tristes de orfa a mendigar moedinhas para um pedaco de pao, um beijinho com carinho, alguma palavra de afecto.
Cinza leve a vagar junto da brisa fria e constante, espectro morbido e jocoso do que um dia foi a minha louca fantasia em brasa, um deboche intimo e cruel, uma maldicao que lanco silenciosamente quando o odio me inflama discretamente antes de converter-se novamente em amor, com o alarde brutal da minha paixao... E repete-se ao infinito os versinhos queridos que me dizem tanto:

'Parte, e tu verás
Como o que era real, resta impreciso
Como é preciso ir por onde vais
Com razão, sem razão, como é preciso
Que andes por onde estás.'

Plena tarde de verao, beijos ao ar, moedas nas fontes da Trafalgar Square, pensamentos distantes 'a beira do Tamisa... tao quente submersao sentimental na capital do Reino Unido.

sexta-feira, agosto 03, 2007

Pedaço de céu

Ca' comigo eu lembrei dos sorrisos, dos cheiros, do vento que passava e da forma das arvores e no outro minuto, quando subitamente vi-me apartado de tudo... senti-me tao miseravel como qualquer mendigo da rua, mas sem o orgulho deles.
E' sempre a reproducao infinita de Cachito, uma sensacao como a que tinha quando meu avo fazia-me uma grande festa no cabelo ao me ver... e' sempre esse conforto maravilhoso que a distancia converte em numa saliva com gosto de fel que apaixona.