Como que um eco que ecoou em outra sala, soube da morte do marido de minha tia Petinha, uma mulher obesa e extremamente carinhosa que quando eu era criança, em seu colo, declarou que queria morar na covinha que há no meu queixo partido, enquanto acariciava meu rosto de infante.
Da convivência familiar, infelizmente sempre fugaz por ser uma tia distante, (mas nem por isso indiferente) restara essas memórias adocicadas, carinhosas, meigas e ternurentas que motivaram meu telefonema de pêsames, algo que uma obrigação sentimental impunha dolorosamente, mas quem perde quem ama sabe o quão reconfortante é receber as dores de outros, como que numa declaração de que toda aquela angústia justifica-se perfeitamente, morreu alguém que não devia, mas na prática é apenas um cumprimento.
Minha intenção, obviamente, era consolá-la de algum modo e assim disse que lamentava, que não fui ao enterro por morar muito longe deles, que de certo a doença o tinha tomado e enfim descansara com a morte. Minha tia escutava tudo inerte no estado de zumbi que sobra às viúvas e às mães dos que acabaram de morrer. Enfim, agradeceu, perguntou por mim, se estava bem, o trabalho como andava e meu coração encheu-se de um amor tão grande e tão secreto em mim que chorei baixinho sem deixá-la perceber, imaginando a grandiosidade daquele coração que tendo já morto o marido e doente a mãe sobrava abnegação da desgraçada situação pra perguntar por um sobrinho com quem não falava a anos com um tom tão maternal e amigo!
Resovi então não terminar o telefona, contei-lhe da formatura, do meu trabalho, dos meus amigos, falei dos livros, ainda dos sonhos e acho que por um instante ela sorriu do outro lado da linha ao encher bem rápido os pulmões de ar no seu risinho sonoro e discreto, minha tia, minha tia querida... tão amorosa.
Enfim, falou-me dos filhos, do que dá aulas na universidade, do que foi para a Alemanha fazer o curso de doutorado, da que trabalha numa loja de roupas, da que está no meio da faculdade, dos que andam sem rumo pela vida não fosse o amor incondicional daquela matrona a unir toda essa gente numa família. Relembrou então os esforços do marido, enterneceu, ruborizou a voz, que no som eletrificante da chamada soou mais humana que qualquer outra ouvida através de um aparelho telefônico: '... pois meu amor morreu, e estou aqui em casa, querido, a olhar o guarda-roupa com os ternos, as camisas, os sapatos... no banheiro o barbeador... pra quem? pra quem usar? meu Deus... onde foi?' Emocionei-me muito, mas não chorei de novo, é preciso ser forte. Se os homens ficarem choramingando, quem apoiará a tristeza das mulheres? Não, força meu rapaz, console sua tia, foi a ordem que recebi de algum canto do pensamento. 'Olha que tudo passa, minha tia, o fato é que os filhos ainda estão aqui, que linda família vocês formaram! Que lar cheio de alegria! Então foi em vão? Pois nós estamos vivos, e os mortos não sorriem, tanto mais com a nossa tristeza...' E tentando consolar com esses clichês cansados, que ao sair da boca já me irritavam, mas não conseguia ver outro caminho, fui tendo dela algumas reações, suspiros fundos e disse por fim 'Chega de chorar'. Sua mãe também estava doente, e na perspectiva de sua alma generosa e desprendida, não tinha o luxo de ficar sofrendo, alguém que amava precisava dela.
Desejou-me felicidades, agradeceu a ligação e dando "um beijo na minha covinha", sorriu enfim, lembrando-se desse nosso poderoso laço. Eu desejei-lhe paz, tranqüilidade e fé que tudo se acertava, que ela amava muito e sem nenhum interesse e que Deus não ignoraria jamais esse fato. Então ela disse aquelas últimas palavras que desde o preciso instante que entraram pelos meus ouvidos não fazem senão passear por todos os pensamentos: "sim, meu anjo, eu amei muito".
sexta-feira, abril 01, 2005
quinta-feira, março 31, 2005
O altar aos olhares
"Vida feita de inveja e de medo" foi esse o pensamento mais forte do meu dia! Atingindo-me perto do meio-dia como um raio caído dos abismos do céu diretamente sobre o meu colo, fez parecer que minha camisa pesava mais de 50 quilos e que peixinhos nadavam ao lado dos copos e dos talheres!
Não poderia imaginar que um simples almoço no centro da cidade fosse lançar tantas faíscas e eu fui colher no chão aquela centelha que se apagava para aqui expor todo meu drama naquele momento que na verdade não era meu, mas alheio, totalmente alheio, pertencia a um estranho rapaz que ao meu lado almoçava desassossegado. Cabelos louros bem curtos, olhos castanhos, visivelmente fora de forma, com as unhas destroçadas pelos dentes e pela ansiedade, parecia incapaz de continuar sua refeição depois de ter visto sentada de frente para nós, numa outra mesa, uma linda mocinha de não mais de 18 anos, com os cabelos castanhos bem escuros e lisos à altura do pescoço, com grandes olhos verdes bem aproveitados pela sua franja e pelas sombrancelhas bem feitas, medindo não mais que 1,65m nem menos que 1,60m, parecia a criatura mais formosa do mundo aos olhos do rapaz, enfeitiçado por esse cenário completado apenas talvez pelo seu lindo decote, nem um pouco exagerado, mas suficiente para ter os olhares que desejasse e ainda mais.
Reparando que ele babava pateticamente no seu prato, um impulso pela dignidade masculina correu meu corpo de repente e de maneira mesmo forçada, eu diria, bem a contragosto de qualquer tipo de abordagem gentil e natural, perguntei de solapão: "Então não é idêntica à Natalie Portman?" O rapaz tossiu de repente e foi uma tossida tão alta que o garção do outro lado do restaurante virou-se para ver se tinha alguém passando mal. Depois de recuperar-se, olhou para mim e disse, "olha que acho ainda mais linda" e dizendo tinha nos olhos uma cor que olhando para o seu rosto de lado não tinha suspeitado que tinha, ele tinha então olhos de mar, marejados de angústia, como nos quadros que retratam navegantes costumava-se colocar aquele azul lilás símbolo de saudade angustiada e doce. Voltou vagarosamente a adorar aquela moça, como que curvando-se ante um altar.
Numa segunda observação ao rosto da moça, lembrei-me rápido de quem era, afinal conhecia a sósia de Natalie Portman! Seu nome é Fátima, tem 19 anos (percebi mal sua idade pelo olhar), estuda Artes na universidade federal e estudou francês no Departamento de Línguas Estrangeiras Modernas quando eu trabalhava lá como monitor desse mesmo idioma. Tendo conversado com ela apenas uma vez para explicações de última hora para um exame, a impressão que restara era de uma pessoa prática e bastante segura, feliz com o que tinha às mãos e nada curiosa, afinal o tipo de mulher que deve estar apaixonada e não fazer apaixonar, embora essa segunda condição seja enfim mais constante nas suas relações.
O rapaz tinha uma expressão tão serena no fim do almoço que eu quase me esqueci que tinha que ir e acabei por atrasar-me um pouco! Nos olhos aquele lilás imaginário e na compostura de seu corpo a certeza de desejar algo que lhe era distante e inalcansável, algo que os padrões, os temperamentos, as circunstâncias não lhe dariam nunca.
Quando o deixei admirando Fátima limpando a boca com o guardanapo de papel, desisti de continuar analisando aquela maciça exposição da fragilidade masculina, talvez sentindo-me compensado por não ter ídolos daquele tipo, talvez cansado de ter compaixão por quem não tem compaixão com o próprio coração.
Não poderia imaginar que um simples almoço no centro da cidade fosse lançar tantas faíscas e eu fui colher no chão aquela centelha que se apagava para aqui expor todo meu drama naquele momento que na verdade não era meu, mas alheio, totalmente alheio, pertencia a um estranho rapaz que ao meu lado almoçava desassossegado. Cabelos louros bem curtos, olhos castanhos, visivelmente fora de forma, com as unhas destroçadas pelos dentes e pela ansiedade, parecia incapaz de continuar sua refeição depois de ter visto sentada de frente para nós, numa outra mesa, uma linda mocinha de não mais de 18 anos, com os cabelos castanhos bem escuros e lisos à altura do pescoço, com grandes olhos verdes bem aproveitados pela sua franja e pelas sombrancelhas bem feitas, medindo não mais que 1,65m nem menos que 1,60m, parecia a criatura mais formosa do mundo aos olhos do rapaz, enfeitiçado por esse cenário completado apenas talvez pelo seu lindo decote, nem um pouco exagerado, mas suficiente para ter os olhares que desejasse e ainda mais.
Reparando que ele babava pateticamente no seu prato, um impulso pela dignidade masculina correu meu corpo de repente e de maneira mesmo forçada, eu diria, bem a contragosto de qualquer tipo de abordagem gentil e natural, perguntei de solapão: "Então não é idêntica à Natalie Portman?" O rapaz tossiu de repente e foi uma tossida tão alta que o garção do outro lado do restaurante virou-se para ver se tinha alguém passando mal. Depois de recuperar-se, olhou para mim e disse, "olha que acho ainda mais linda" e dizendo tinha nos olhos uma cor que olhando para o seu rosto de lado não tinha suspeitado que tinha, ele tinha então olhos de mar, marejados de angústia, como nos quadros que retratam navegantes costumava-se colocar aquele azul lilás símbolo de saudade angustiada e doce. Voltou vagarosamente a adorar aquela moça, como que curvando-se ante um altar.
Numa segunda observação ao rosto da moça, lembrei-me rápido de quem era, afinal conhecia a sósia de Natalie Portman! Seu nome é Fátima, tem 19 anos (percebi mal sua idade pelo olhar), estuda Artes na universidade federal e estudou francês no Departamento de Línguas Estrangeiras Modernas quando eu trabalhava lá como monitor desse mesmo idioma. Tendo conversado com ela apenas uma vez para explicações de última hora para um exame, a impressão que restara era de uma pessoa prática e bastante segura, feliz com o que tinha às mãos e nada curiosa, afinal o tipo de mulher que deve estar apaixonada e não fazer apaixonar, embora essa segunda condição seja enfim mais constante nas suas relações.
O rapaz tinha uma expressão tão serena no fim do almoço que eu quase me esqueci que tinha que ir e acabei por atrasar-me um pouco! Nos olhos aquele lilás imaginário e na compostura de seu corpo a certeza de desejar algo que lhe era distante e inalcansável, algo que os padrões, os temperamentos, as circunstâncias não lhe dariam nunca.
Quando o deixei admirando Fátima limpando a boca com o guardanapo de papel, desisti de continuar analisando aquela maciça exposição da fragilidade masculina, talvez sentindo-me compensado por não ter ídolos daquele tipo, talvez cansado de ter compaixão por quem não tem compaixão com o próprio coração.
terça-feira, março 22, 2005
Guerra pelo amor
"...
E como o mar dentro da treva
Num constante arremesso largo e aflito
Eu me espedaço em vão contra o infinito."
E como o mar dentro da treva
Num constante arremesso largo e aflito
Eu me espedaço em vão contra o infinito."
IV Soneto de Meditação, Vinicius de Moraes
Eu sou avesso à qualquer tipo de hostilidade. Não me agrada ver gritos, murros cheios de raiva, menos ainda agressividades menos apaixonadas e mais brutais, como a dos criminosos e talvez essa repulsa explique também o meu nojo ao ver sangue.
Agradam-me os esportes porque neles há o sentimento do lúdico e da competição, ambos interessantes de serem curtidos e que confesso que adoro. Neles não há o sentimento de ódio, nem da tara pela morte alheia (ao menos entre competidores normais), de modo que essa agressividade é apenas aparente e serve mais para afirmar a virilidade e masculinidade com algum divertimento do que para humilhar e derrotar propriamente.
Há um outro tipo de competição que consegue não ter hostilidade e nem tampouco ser lúdica por si mesma (embora acabe sendo também lúdica em algum sentido), a competição pelo amor verdadeiro. Chamá-lo de jogo seria diminuir sua importância, seu vulto colossal sobre nossas vidas, diminuir a importância que tem como o caminho que traçamos enquanto achamos infantilmente que um bom emprego e bens de capital nos trarão respeito e paz, deixando um rastro de decisões frias de mãos dadas com muito lamento. Talvez fosse apropriado a pecha de 'guerra', já que é nas guerras que os destinos são decididos e a tragédia coloca pedras nos cruzamentos que não podem nunca ser retiradas e as batalhas tornam-se tão ferozes quanto inesquecíveis e também assim é a luta pelo amor.
Cada romance é uma batalha, cada beijo um tiro, cada olhar uma estratégia, cada abraço uma trégua. Mas nessa guerra os objetivos não são contrários, mas os mesmos, qual seria o famoso amor verdadeiro, aquele conhecido por encher a alma de paz e felicidade. Muito lindo, mas sem muita emoção, de modo que a prática das guerras mostra a faceta maior deste tipo de conflito armado: nem sempre as partes tem esse comum objetivo. Muitas das vezes, há os que querem o amor, simplesmente querem amar e ser amadas, e os que querem livrar-se da solidão, querem outrem pra usar ou pra exibir, os que fazem da guerra um conflito desonesto. Desonesto para a outra parte que guerreia de boa fé e com paixão adentra as linhas inimigas e se deixa adentrar sem medos, mas sobretudo desonesta para esses desafortunados medrosos, pois no fim das contas os grandes amigos que lhe sobram são a solidão e o arrependimento de não ter acreditado e também, se tiverem algum caráter, a angústia de ter magoado.
Batalha após batalha, aprende-se que o amor é uma dura conquista! Quanto tato é preciso para não deixar morrer! Quanta afinidade é necessária para não descubrir-se a luta por uma batalha perdida! Quanta expectativa para sentir um amor a crescer vermelho de vida! E assim seguem-se os amores, como segue sempre a vida impassível. Alguns não suportam as derrotas e desistem da luta, enclausuram-se em verdades que acham absolutas, envolvem-se superficialmente, tornam-se eremitas, matam-se, de todo jeito abdicam do amor de uma maneira muito triste, muito transtornada, numa atitude que merece nossas mais devotadas orações. Mas os mais românticos mantém a chama desta crença, como antigamente se mantinha nas casas a chama dos ancestrais, que não podia se deixar apagar por razão nenhuma nesse mundo! Acreditam no tal do amor, e lutam bravamente, batalha após batalha, carregando humildemente suas cicatrizes e farda surrada com dignidade e sem nenhum constrangimento de ter perdido, isso tudo porque acredita intimamente na vitória que sabe sua.
Na guerra pelo amor há momentos de dúvida, em que cogita-se friamente esquecer tudo isso, e abdicar como tantos fazem da oportunidade de vencer um dia, contentando-se com os restos e sobras que varejam nas esquinas do que é verdadeiramente o amor. Um medo imenso corre a espinha e olha-se nos olhos do futuro "inimigo" como que dizendo: "faça com que eu acredite". Rezando subitamente para que um sinal divino restaure a sua fé e sua vontade de luta, sua gana de vitória, o vigor da artilharia, a frieza apaixonada dos ataques de madrugada, quando o inimigo dorme inocentemente. Reza-se para que essa fé na guerra pelo amor surja de algum canto da alma. E se ela finalmente surge, que bela surpresa! Tanta felicidade, tanto júbilo, tudo por ter recomeçado uma guerra.
Mas para vencer, não basta acreditar e perseverar na luta, é preciso agir! A ação é a própria alma das guerras e com a guerra pelo amor não é nada diferente! Não afastar-se nunca do "inimigo" é um ótimo começo, afinal, só bem de perto para realmente poder feri-lo de morte! O carinho e o afeto são bombas poderosas, a afinidade de gostos é o melhor dos exércitos de ocupação, porque não são agressivos com a população local, muito pelo contrário, são parte dela, embora nunca tenham antes estado ali. Por fim, a conquista do amor exige perseverança na verdade, sim, eis aqui a mãe de todas as bombas que garante a vitória final. A verdade liberta e na guerra pelo amor, como em todas as boas guerras da vida, ela é sempre a melhor arma para vencer, garantindo que entre os mortos e feridos sobre duas almas enlaçadas de um sentimento maior que qualquer outro, enlaçadas no ideal de que todo o sangue não foi em vão.
quinta-feira, março 17, 2005
Brigas e unhas quebradas
Para infelicidade geral da comunidade do meu prédio, terminou ontem um lindo romance entre a senhorita Patrícia e um rapaz mais velho que mora no Alto dos Passos.
Alegria da pracinha do bairro, esse casal parecia ter nascido grudado, como siameses do amor! E então quem dissesse que aquilo acabaria, só faria rir aos outros que admiravam: quanta paixão!
Na mesma medida, que drama imenso infestou aquele prédio! Do lado da minha janela a sala de estar de Patrícia, com seu sofá servindo de colo para seu corpo pulsando lágrima e lamento, eu ouvia sem ter escapatória e ainda preso em casa por achar a menina tão querida e tão decidida em amar daquela maneira, fiquei ainda uns longos minutos escutando as bobagens que ela dizia às almofadas.
De repente um rasgo de tristeza entrou forte entre os sentimentos da relativa paz que eu desfrutava já há uns poucos dias e disse tão asperamente para mim que eu tinha culpa naquilo. Maldita mania que tenho de culpar-me pelas desgraças sentimentais do mundo, como se tivesse cometido mesmo o maior dos crimes sentimentais, minha pena é tomar a culpa de todos os outros e me recriminar pelo sofrimento de quem deixa de achar o amor uma boa idéia!
Mas a dor dela despregou meus medos e os fez suar um pouco junto do meu rosto à janela e chorei um pouco com ela, ambos mudos e irracionais aos fatos, apenas obedecendo ao impulso do instante.
O telefone toca, Patrícia atente, mas não sem antes, tentar secar as narinas e as faces. "Alô, quem é? [...] Sim, só preciso de um banho". Foi ao banheiro, pelo visto apenas lavou o rosto e respirou fundo. Em seguida saiu e bateu à minha porta, o que me fez saltar do sofá num pulo, fui atender, já eram mais de 23hs. "Oi, Patrícia, entre", entrou, e sentou-se no sofá. "Preciso que você vá comigo a um lugar". "Onde?", perguntei surpreso, "No Grama, preciso resolver um problema imediatamente" E olhando os imensos olhos verdes ainda bem vermelhos, olhando a boca cerrada e o cabelo preso como que pronta para atacar o inimigo, ao contrário da suavidade de passear com a juga solta, vi uma Patrícia que não poderia nunca andar sozinha na rua àquelas horas. Fui junto depois de uma dose de conhaque que ela não quis compartilhar comigo.
Chegamos depois de 40 minutos em frente à uma casa, uma velha preta atendeu e chamou Patrícia para perto, fiquei de longe olhando. Ela lhe deu uma sacola com algumas coisas dentro e algum dinheiro, não consegui ver quanto. Falaram pouco, parecia que tudo já havia sido combinado por telefone, não interferi.
Voltou-se para mim já com outro semblante, parecia aliviada. Voltamos com a mesma disposição de conversa da ida, ou seja, nenhuma, mas dessa vez não me contive: "Então está mandando lavar a roupa longe de casa?" E me olhando com algum carinho da nossa amizade tão inconstante, mas de tanta afinidade despejou no meu colo aquela sentença cheia de piedade "Ele vai se apaixonar de novo, é o que eu mais quero, mas eu não."
Não sei porque tenho por amigos gente tão generosa, gente ao mesmo tempo tão desprendida desses vícios urbanos de uso e desuso... Depois de tanto grito, de tanto choro, de tanta briga, sobrou para ela não se apaixonar e apenas isso pedia à feiticeira naquela madrugada. Pediu com toda a força do dinheiro e do desespero que secasse toda a empolgação que irrigou no corpo o êxtase que entregou ao rapaz na forma de amor sem medo e que recebeu dele uma traição continuada e uma explicação esfarrapada.
Ao mesmo tempo, eu senti um medo repentino de estar ali com ela, como que se uma palavra errada me colocasse na lista de magia negra de minha vizinha e arrepiei olhando o seu olhar decidido e já seco.
Entramos no prédio, fomos juntos e calados subindo as escadas. "Obrigado, querido, tava com medo". "Eu também, Patrícia". Ela sorriu, entendendo perfeitamente e disse "amanhã tudo volta ao normal, ao menos o que tiver sobrado". Despedimo-nos e entramos com esse mesmo desejo.
Alegria da pracinha do bairro, esse casal parecia ter nascido grudado, como siameses do amor! E então quem dissesse que aquilo acabaria, só faria rir aos outros que admiravam: quanta paixão!
Na mesma medida, que drama imenso infestou aquele prédio! Do lado da minha janela a sala de estar de Patrícia, com seu sofá servindo de colo para seu corpo pulsando lágrima e lamento, eu ouvia sem ter escapatória e ainda preso em casa por achar a menina tão querida e tão decidida em amar daquela maneira, fiquei ainda uns longos minutos escutando as bobagens que ela dizia às almofadas.
De repente um rasgo de tristeza entrou forte entre os sentimentos da relativa paz que eu desfrutava já há uns poucos dias e disse tão asperamente para mim que eu tinha culpa naquilo. Maldita mania que tenho de culpar-me pelas desgraças sentimentais do mundo, como se tivesse cometido mesmo o maior dos crimes sentimentais, minha pena é tomar a culpa de todos os outros e me recriminar pelo sofrimento de quem deixa de achar o amor uma boa idéia!
Mas a dor dela despregou meus medos e os fez suar um pouco junto do meu rosto à janela e chorei um pouco com ela, ambos mudos e irracionais aos fatos, apenas obedecendo ao impulso do instante.
O telefone toca, Patrícia atente, mas não sem antes, tentar secar as narinas e as faces. "Alô, quem é? [...] Sim, só preciso de um banho". Foi ao banheiro, pelo visto apenas lavou o rosto e respirou fundo. Em seguida saiu e bateu à minha porta, o que me fez saltar do sofá num pulo, fui atender, já eram mais de 23hs. "Oi, Patrícia, entre", entrou, e sentou-se no sofá. "Preciso que você vá comigo a um lugar". "Onde?", perguntei surpreso, "No Grama, preciso resolver um problema imediatamente" E olhando os imensos olhos verdes ainda bem vermelhos, olhando a boca cerrada e o cabelo preso como que pronta para atacar o inimigo, ao contrário da suavidade de passear com a juga solta, vi uma Patrícia que não poderia nunca andar sozinha na rua àquelas horas. Fui junto depois de uma dose de conhaque que ela não quis compartilhar comigo.
Chegamos depois de 40 minutos em frente à uma casa, uma velha preta atendeu e chamou Patrícia para perto, fiquei de longe olhando. Ela lhe deu uma sacola com algumas coisas dentro e algum dinheiro, não consegui ver quanto. Falaram pouco, parecia que tudo já havia sido combinado por telefone, não interferi.
Voltou-se para mim já com outro semblante, parecia aliviada. Voltamos com a mesma disposição de conversa da ida, ou seja, nenhuma, mas dessa vez não me contive: "Então está mandando lavar a roupa longe de casa?" E me olhando com algum carinho da nossa amizade tão inconstante, mas de tanta afinidade despejou no meu colo aquela sentença cheia de piedade "Ele vai se apaixonar de novo, é o que eu mais quero, mas eu não."
Não sei porque tenho por amigos gente tão generosa, gente ao mesmo tempo tão desprendida desses vícios urbanos de uso e desuso... Depois de tanto grito, de tanto choro, de tanta briga, sobrou para ela não se apaixonar e apenas isso pedia à feiticeira naquela madrugada. Pediu com toda a força do dinheiro e do desespero que secasse toda a empolgação que irrigou no corpo o êxtase que entregou ao rapaz na forma de amor sem medo e que recebeu dele uma traição continuada e uma explicação esfarrapada.
Ao mesmo tempo, eu senti um medo repentino de estar ali com ela, como que se uma palavra errada me colocasse na lista de magia negra de minha vizinha e arrepiei olhando o seu olhar decidido e já seco.
Entramos no prédio, fomos juntos e calados subindo as escadas. "Obrigado, querido, tava com medo". "Eu também, Patrícia". Ela sorriu, entendendo perfeitamente e disse "amanhã tudo volta ao normal, ao menos o que tiver sobrado". Despedimo-nos e entramos com esse mesmo desejo.
quarta-feira, março 16, 2005
Doce por dentro
Na perspectiva de não sofrer as saudades de férias longe dos amiguinhos, meu priminho Mateus fez bonecos de massa de modelar dos que gosta.
Contornava com cuidado a cabeça de cada qual, como se afagasse a cabeça verdadeira e contornava os traços com um palito de dentes.
Os olhos fixos pareciam alegrar-se imensamente quando trazia da massa inanimada a feição parecida com a original e ele sorria generosamente sua ingenuidade e amor infantis.
"Mas Mateus, os bonecos não falam, não andam, não são nada além de bonecos de massa!", tentava provocá-lo para ver sua argumentação e ele "pois é", concordando sem muita insatisfação com a provocativa. "Pois então de que serve fazê-los?", continuei e ele "ora, serve para eu não esquecer que gosto deles" e disse muito bem o pequenino.
Continuava lá entretido a comparar as fotos da estante com os bonequinhos que ia fazendo e a alegrar-se com qualquer progresso.
Enquanto meu priminho alegrava-se com a grande idéia, eu escutava "metamorfose ambulante" e imaginava se as imagens cofirmariam para mim o amor que representam.
Talvez eu pudesse mesmo fazer bonecos dos amigos que não vejo há muito tempo e olhar para eles para lembrar-me o quanto foi boa nossa convivência, o quanto fomos felizes e o quanto gosto deles. Mas por outro lado, daí já aprofundo mais que meu primo, fossem o símbolo da falta de atenção com a nossa amizade, do desleixo em ligar, em marcar encontros, em dar continuidade aos projetos, daí seria o símbolo de um deboche.
Vem a próxima música do Raul: "quem não tem colírio..." e eu penso se me faltou colírio para deixar de receber as ligações dos meus amigos, ou se da parte deles sobraram óculos escuros para não se importar também e não ver que cada pequena ausência fazia essa maior e tão ameaçadoramente definitiva.
Em seguida começou a "tente outra vez"! Sim, "a água viva ainda tá na fonte" e esse determinismo todo começa engalfinhar e tornar turva a bela imagem poética de esperança que o Mateus tão gentilmente criou para si e me deixou tão impressionado.
Eu não vou usar de massa de modelar, uso das minhas lembranças para não esquecer-me dos amigos. Vem cá dentro aquela vez que fizemos issos e aquilos, conversamos, rimos e nos importamos com as mesmas coisas, das músicas que dançamos juntos e das nossas idiotices que foram suportadas sem muito escárnio.
Os bonecos da imaginação são mais interativos, mas tenho pena que encenem sempre as mesmas situações. O bom seria ter lembranças novas e mais que isso, conseguir confirmar se eles também tem um boneco meu, se também se importam e sofrem como eu essa nossa ausência.
O fato que não deve ser ignorado é que nem todos lidam com isso da mesma forma, e deixam mesmo morrer até as memórias que tivessem sobrevivido à amizade o que aborrece muito. Mas eu não me dou o luxo de esquecer, apesar de ser o pouco que restou, é meu, sim, meus bonecos dos meus amigos. :D
Contornava com cuidado a cabeça de cada qual, como se afagasse a cabeça verdadeira e contornava os traços com um palito de dentes.
Os olhos fixos pareciam alegrar-se imensamente quando trazia da massa inanimada a feição parecida com a original e ele sorria generosamente sua ingenuidade e amor infantis.
"Mas Mateus, os bonecos não falam, não andam, não são nada além de bonecos de massa!", tentava provocá-lo para ver sua argumentação e ele "pois é", concordando sem muita insatisfação com a provocativa. "Pois então de que serve fazê-los?", continuei e ele "ora, serve para eu não esquecer que gosto deles" e disse muito bem o pequenino.
Continuava lá entretido a comparar as fotos da estante com os bonequinhos que ia fazendo e a alegrar-se com qualquer progresso.
Enquanto meu priminho alegrava-se com a grande idéia, eu escutava "metamorfose ambulante" e imaginava se as imagens cofirmariam para mim o amor que representam.
Talvez eu pudesse mesmo fazer bonecos dos amigos que não vejo há muito tempo e olhar para eles para lembrar-me o quanto foi boa nossa convivência, o quanto fomos felizes e o quanto gosto deles. Mas por outro lado, daí já aprofundo mais que meu primo, fossem o símbolo da falta de atenção com a nossa amizade, do desleixo em ligar, em marcar encontros, em dar continuidade aos projetos, daí seria o símbolo de um deboche.
Vem a próxima música do Raul: "quem não tem colírio..." e eu penso se me faltou colírio para deixar de receber as ligações dos meus amigos, ou se da parte deles sobraram óculos escuros para não se importar também e não ver que cada pequena ausência fazia essa maior e tão ameaçadoramente definitiva.
Em seguida começou a "tente outra vez"! Sim, "a água viva ainda tá na fonte" e esse determinismo todo começa engalfinhar e tornar turva a bela imagem poética de esperança que o Mateus tão gentilmente criou para si e me deixou tão impressionado.
Eu não vou usar de massa de modelar, uso das minhas lembranças para não esquecer-me dos amigos. Vem cá dentro aquela vez que fizemos issos e aquilos, conversamos, rimos e nos importamos com as mesmas coisas, das músicas que dançamos juntos e das nossas idiotices que foram suportadas sem muito escárnio.
Os bonecos da imaginação são mais interativos, mas tenho pena que encenem sempre as mesmas situações. O bom seria ter lembranças novas e mais que isso, conseguir confirmar se eles também tem um boneco meu, se também se importam e sofrem como eu essa nossa ausência.
O fato que não deve ser ignorado é que nem todos lidam com isso da mesma forma, e deixam mesmo morrer até as memórias que tivessem sobrevivido à amizade o que aborrece muito. Mas eu não me dou o luxo de esquecer, apesar de ser o pouco que restou, é meu, sim, meus bonecos dos meus amigos. :D
segunda-feira, março 14, 2005
O amor das cobras selvagens
Meus poemas envelheceram de repente quando os reli no sábado. Estavam muito bem medidos os sonetos, os versos livres continuavam bem livres, todos em itálico e com o título todo em maiúsculas, tudo lindo e quase tudo velho e cansado.
Como o passar do tempo em relação aos edifícios de arquitetura neoclássica, a chuva, o vento, o sol violentaram também os meus versos e fizeram crescer ramos de sabambaia, longas línguas pretas pela parede, desbotamento das cores da pintura, enegrescimento das faces das estatuetas que guardavam o portão no alto das colunas.
Andei pelos corredores do meu palácio poético e os fiz ranger as velhas tábuas do piso com os meus passos decididos, e fiquei assustado quando o vento fez bater as portas e janelas, lançando ao chão fragmentos da madeira apodrecida. A casa respondia à minha presença como um velho defende-se da agressão que sabe que sofrerá em seguida, mas pela própria debilidade trazida pelo tempo, sabe que não tem chances de sucesso, sobra a raiva.
Olhei dentro dos quartos e senti um cheiro de outros tempos. Lembrei-me doutros amores e medos, de outros pensamentos noutras avenidas, priorizados então os primeiros sentimentos. Na antiga pretensão, quase infantil, de reduzir tudo a um verso rancoroso e feroz, reluziu para mim meu maroto jeito de esperar o inesperado surgir de repente, trazendo a solução que, à parte da fé que eu tinha, não veio. Num tempo em que eu achava que o amor das cobras selvagens continha alguma paixão, olhava-as com respeito, mas hoje está tudo desmentido!
Analisando cruamente a culpa é toda minha, por óbvio. Isso de colocar a culpa no vento, no sol e na chuva é um argumentozinho metafórico muito besta! Eu fui quebrando secretamente nas madrugadas os pilares desse edifício poético e passei a maldizer as antigas verdades como que tentando saber se sobreviveria com altivez a minha própria renúncia de natureza e embora o processo não esteja ainda totalmente completado, sei que a tampa da banheira foi retirada e a água está indo embora com muito boa vontade, essas leis naturais são mesmo muito prestativas. Versos novos são a nova água para meu banho. Versos mais encorpados de um bom carinho e tempero de inteligência, sim, versos assim merecem o papel. Tenho pensado em poetas inspiradores de tempos mais remotos, como William Blake e mesmo Oscar Wilde que lia muito antes de entrar para a universidade. Esses poetas tem um estilo muito particularmente esculpido nas paixões e pensamentos parametrados em coisas verdadeiras. Blake foi um iconoclasta, Wilde um inovador genial, neles talvez encontre riso e prazer pra pensar em versos meus mais afetos ao meu atual propósito.
Resta uma resposta que deve estar perturbando o autor mais atento: por que abrir aqui as mais secretas opiniões sobre a própria produção poética? Bem, primeiro porque não encontrei razão verdadeira para omitir isso, segundo porque é uma maneira de materializar e destribuir os pensamentos, herança do antigo estilo que ainda não me desfiz completamente já que ainda me conforta muito, terceiro porque é a verdade e a verdade é o melhor dos argumentos.
Agora me dêem licença, por favor. Nesse exato instante imagino um lindo poema! Será inclusive um dos pilares do novo edifício poético: 120 andares, com lojas, estacionamentos, escritórios, academias de musculação, cinemas, restaurante na cobertura com vista panorâmica para toda a cidade e ainda rampa de pulo para paraquedistas! Espero que todos se divirtam tanto quanto eu e apreciem as novas instalações.
Como o passar do tempo em relação aos edifícios de arquitetura neoclássica, a chuva, o vento, o sol violentaram também os meus versos e fizeram crescer ramos de sabambaia, longas línguas pretas pela parede, desbotamento das cores da pintura, enegrescimento das faces das estatuetas que guardavam o portão no alto das colunas.
Andei pelos corredores do meu palácio poético e os fiz ranger as velhas tábuas do piso com os meus passos decididos, e fiquei assustado quando o vento fez bater as portas e janelas, lançando ao chão fragmentos da madeira apodrecida. A casa respondia à minha presença como um velho defende-se da agressão que sabe que sofrerá em seguida, mas pela própria debilidade trazida pelo tempo, sabe que não tem chances de sucesso, sobra a raiva.
Olhei dentro dos quartos e senti um cheiro de outros tempos. Lembrei-me doutros amores e medos, de outros pensamentos noutras avenidas, priorizados então os primeiros sentimentos. Na antiga pretensão, quase infantil, de reduzir tudo a um verso rancoroso e feroz, reluziu para mim meu maroto jeito de esperar o inesperado surgir de repente, trazendo a solução que, à parte da fé que eu tinha, não veio. Num tempo em que eu achava que o amor das cobras selvagens continha alguma paixão, olhava-as com respeito, mas hoje está tudo desmentido!
Analisando cruamente a culpa é toda minha, por óbvio. Isso de colocar a culpa no vento, no sol e na chuva é um argumentozinho metafórico muito besta! Eu fui quebrando secretamente nas madrugadas os pilares desse edifício poético e passei a maldizer as antigas verdades como que tentando saber se sobreviveria com altivez a minha própria renúncia de natureza e embora o processo não esteja ainda totalmente completado, sei que a tampa da banheira foi retirada e a água está indo embora com muito boa vontade, essas leis naturais são mesmo muito prestativas. Versos novos são a nova água para meu banho. Versos mais encorpados de um bom carinho e tempero de inteligência, sim, versos assim merecem o papel. Tenho pensado em poetas inspiradores de tempos mais remotos, como William Blake e mesmo Oscar Wilde que lia muito antes de entrar para a universidade. Esses poetas tem um estilo muito particularmente esculpido nas paixões e pensamentos parametrados em coisas verdadeiras. Blake foi um iconoclasta, Wilde um inovador genial, neles talvez encontre riso e prazer pra pensar em versos meus mais afetos ao meu atual propósito.
Resta uma resposta que deve estar perturbando o autor mais atento: por que abrir aqui as mais secretas opiniões sobre a própria produção poética? Bem, primeiro porque não encontrei razão verdadeira para omitir isso, segundo porque é uma maneira de materializar e destribuir os pensamentos, herança do antigo estilo que ainda não me desfiz completamente já que ainda me conforta muito, terceiro porque é a verdade e a verdade é o melhor dos argumentos.
Agora me dêem licença, por favor. Nesse exato instante imagino um lindo poema! Será inclusive um dos pilares do novo edifício poético: 120 andares, com lojas, estacionamentos, escritórios, academias de musculação, cinemas, restaurante na cobertura com vista panorâmica para toda a cidade e ainda rampa de pulo para paraquedistas! Espero que todos se divirtam tanto quanto eu e apreciem as novas instalações.
quinta-feira, março 10, 2005
Estrela derradeira
Se a nostalgia é um sentimento ligado quase sempre aos que são mais velhos e vivem se queixando das 'modernidades' e elevando os 'bons tempos que não voltam mais', tenho que recusar a partir de agora esse arquétipo.
Talvez a nostalgia não surja do fundo abissal do oceano por acaso, talvez surja pela tristeza de não se ter mais, é um sentimento de perda. Com esse caráter a nostalgia e a melancolia dão as mãos para rememorações bem quietas e silenciosas, carregadas de apego e inconformismo com a sugestão do desapego.
A amizade que enfraquece e acaba, o amor que se aflige e se machuca, a boa conversa que não se repete, a felicidade agora impossível de ser como antes tem de mudar o tom. Tem de se colorir com sorrisos novos, tem de levantar alto novos sonhos, tem que se convencer doutras vias para alcançar a paz, porém, a tentação de antes é poderosa e pode-se, ao experimentá-la, ter noção do lamento dos velhinhos.
Como uma escavadeira que remexe entulhos e faz brotar da terra sobreposta cadáveres em decomposição que ainda guardam as expressões humanas, cadáveres vivos para o resto do mundo, mas que morreram para aquele amor que os uniu um dia e dessa morte emparelhada contra a parede da realidade não cabe tentativa de reanimação, não há pára-médico que acuda, nem extrema-unção que liberte do tormento: o zumbi continua nos pensamentos.
Entre essas lembranças, sempre vivas no coração e não mais vivas na realidade, o lado bom e feliz de cada qual contribui na mesma medida para a angústia de ter acabado e vem aqueles suspiros sem muito exagero, sem muito ânimo, mas que denunciam esse toque que não toca mais, esse emaranhado de sentimentos, esse complexo adorno que ficou depois que a banda foi-se e parou de tocar a melodia para a dança, até então, bastante animada.
Como no fim da madrugada eu procurava a última estrela a morrer ante a luz do novo dia. O grande prazer de olhar o céu cinza quase azul e buscar nele aquela estrela mais forte que as outras, a que resistiria mais e mais e brilharia porque queria me entregar alguma fé na vida.
Quando eu a encontrava eu ficava feliz, e tomava um suspiro daquele ar frio da manhã ainda pequena. Pensava que estava tudo bem e de certo estava. Achava que esse sinal iria me privar de duvidar do que eu sentia e pensava, queria muito que fosse assim.
A estrela derradeira também morre conforme cresce a manhã, conforme o sol enche o céu com mais luz e fica sem rival a desfilar por horas seguidas a sua supremacia.
Mas de novo vem a noite, vêm as estrelas, a madrugada das dúvidas e dos ventos, e a manhã da vida traz de volta a estrela derradeira.
Lá no alto, num canto perdido do espaço, ainda brilha, como há tanto tempo atrás também brilhava do mesmo modo. Ela liberta essa grande nostalgia de ser só memória com uma decisão que lembrou num susto a minha própria decisão em seguir os meus caminhos, e nessa empolgação de rir, de falar, de beijar, de ouvir, de sentir, brilhou por um instante como brilhava antes e olhando o céu eu me lembrei, entristeci e depois sorri.
Talvez a nostalgia não surja do fundo abissal do oceano por acaso, talvez surja pela tristeza de não se ter mais, é um sentimento de perda. Com esse caráter a nostalgia e a melancolia dão as mãos para rememorações bem quietas e silenciosas, carregadas de apego e inconformismo com a sugestão do desapego.
A amizade que enfraquece e acaba, o amor que se aflige e se machuca, a boa conversa que não se repete, a felicidade agora impossível de ser como antes tem de mudar o tom. Tem de se colorir com sorrisos novos, tem de levantar alto novos sonhos, tem que se convencer doutras vias para alcançar a paz, porém, a tentação de antes é poderosa e pode-se, ao experimentá-la, ter noção do lamento dos velhinhos.
Como uma escavadeira que remexe entulhos e faz brotar da terra sobreposta cadáveres em decomposição que ainda guardam as expressões humanas, cadáveres vivos para o resto do mundo, mas que morreram para aquele amor que os uniu um dia e dessa morte emparelhada contra a parede da realidade não cabe tentativa de reanimação, não há pára-médico que acuda, nem extrema-unção que liberte do tormento: o zumbi continua nos pensamentos.
Entre essas lembranças, sempre vivas no coração e não mais vivas na realidade, o lado bom e feliz de cada qual contribui na mesma medida para a angústia de ter acabado e vem aqueles suspiros sem muito exagero, sem muito ânimo, mas que denunciam esse toque que não toca mais, esse emaranhado de sentimentos, esse complexo adorno que ficou depois que a banda foi-se e parou de tocar a melodia para a dança, até então, bastante animada.
Como no fim da madrugada eu procurava a última estrela a morrer ante a luz do novo dia. O grande prazer de olhar o céu cinza quase azul e buscar nele aquela estrela mais forte que as outras, a que resistiria mais e mais e brilharia porque queria me entregar alguma fé na vida.
Quando eu a encontrava eu ficava feliz, e tomava um suspiro daquele ar frio da manhã ainda pequena. Pensava que estava tudo bem e de certo estava. Achava que esse sinal iria me privar de duvidar do que eu sentia e pensava, queria muito que fosse assim.
A estrela derradeira também morre conforme cresce a manhã, conforme o sol enche o céu com mais luz e fica sem rival a desfilar por horas seguidas a sua supremacia.
Mas de novo vem a noite, vêm as estrelas, a madrugada das dúvidas e dos ventos, e a manhã da vida traz de volta a estrela derradeira.
Lá no alto, num canto perdido do espaço, ainda brilha, como há tanto tempo atrás também brilhava do mesmo modo. Ela liberta essa grande nostalgia de ser só memória com uma decisão que lembrou num susto a minha própria decisão em seguir os meus caminhos, e nessa empolgação de rir, de falar, de beijar, de ouvir, de sentir, brilhou por um instante como brilhava antes e olhando o céu eu me lembrei, entristeci e depois sorri.
quarta-feira, março 09, 2005
Turmalinas
Depois de passar por mais de duas centenas de vezes pela frente de um edifício próximo à minha casa, percebi que seu nome é "Turmalinas", fato que ocupou meus pensamentos, sempre a fazer conexões e a buscar sentidos em todas as coisas.
Imaginei que deveria ter sido idéia da construtora ao lançar os apartamentos à venda dar aquele nome, talvez tivesse pensado em batizar o prédio desta maneira para demonstrar alguma coisa. Se fosse para demonstrar o significado de turmalina, o prédio remeteria à ser a falsa jóia, ou melhor, a jóia de menor valor. Ainda tratando-se de alguém que conhece a poesia da história de Minas Gerais, essa pedra está envolvida na história das bandeiras do século XVII, expedições formadas sobretudo por paulistas que empenhavam-se em concontrar pedras e metais preciosos no Brasil, sobretudo nas latitudes correspondentes à exploração da prata em Potosi, na Bolívia, onde os espanhóis haviam tido êxito nesse propósito.
Estimulado pelas promessas de prêmios e de honrarias(títulos de nobreza), o bandeirante Fernão Dias, famoso apresador de índios, partiu de São Paulo, em 1674, à procura de prata e esmeraldas. Durante sete anos, sua bandeira percorreu os sertões mineiros, partindo de São Paulo à cabeceira do Rio das Velhas até a região do Serro Frio.
Conhecido como o "caçador de esmeraldas", Dias foi responsavel pelo estabelecimento de vários arraiais, desbravando verdadeiramente regiões que não eram conhecidas por europeus.
Sua bandeira, entretanto, não viveu momentos sempre gloriosos. Composta por seu filho Garcia Rodrigues Pais, Matias Cardoso de Almeida, seu genro, Manuel Borba Gato e seu filho bastardo, José Dias Pais, padeceu de um incidente de insurreição levantado por esse último, que acusado de traição, foi condenado à morte e enforcado por seus companheiros.
Imaginando ter encontrado esmeraldas, a bandeira regressa e antes dela chega a notícia do seu êxito. Fernão Dias morre mesmo acreditando ter encontrado esmeraldas, mas na verdade tratava-se de turmalinas, gemas que quase não tem valor.
A saga deste célebre bandeirante paulista talvez tenha sido o motivo do batismo desse edifício como "Turmalinas", remetendo ao fato de ser uma jóia, sim, mas uma jóia de valor menor, que não merece tanto apego quanto parece à primeira vista.
Se a idéia foi essa, não deixa de soar estranho morar num lugar que tenha esse espírito. Como se respondesse à alguém que pergunta: "moro nas 'Turmalinas', aquele edifício que parece uma esmeralda, mas é só uma gema de menor valor". Acho quase impossível alguém responder isso, na verdade, mas se eu morasse lá e alguém me perguntasse, eu iria sempre pensar nessa resposta e seria dificílimo responder: "moro nas "Turmalinas", aquele edifício em frente à praça de São Mateus".
Mas o que parece no fim das contas é que estou abstraindo demais, talvez porque seja um entusiasta da saga de Fernão Dias, talvez por sempre procurar sentido nos nomes das coisas, o mais razoável é pensar que a idéia desse nome ao edifício foi quase ao acaso, o batizador, por misteriosas e pessoais razões, gosta desse nome, quando muito de turmalinas, e achou que seria bastante e suficiente esse nome e essa é a melhor das apostas.
Da minha parte, entretanto, nunca moraria nesse prédio.
Imaginei que deveria ter sido idéia da construtora ao lançar os apartamentos à venda dar aquele nome, talvez tivesse pensado em batizar o prédio desta maneira para demonstrar alguma coisa. Se fosse para demonstrar o significado de turmalina, o prédio remeteria à ser a falsa jóia, ou melhor, a jóia de menor valor. Ainda tratando-se de alguém que conhece a poesia da história de Minas Gerais, essa pedra está envolvida na história das bandeiras do século XVII, expedições formadas sobretudo por paulistas que empenhavam-se em concontrar pedras e metais preciosos no Brasil, sobretudo nas latitudes correspondentes à exploração da prata em Potosi, na Bolívia, onde os espanhóis haviam tido êxito nesse propósito.
Estimulado pelas promessas de prêmios e de honrarias(títulos de nobreza), o bandeirante Fernão Dias, famoso apresador de índios, partiu de São Paulo, em 1674, à procura de prata e esmeraldas. Durante sete anos, sua bandeira percorreu os sertões mineiros, partindo de São Paulo à cabeceira do Rio das Velhas até a região do Serro Frio.
Conhecido como o "caçador de esmeraldas", Dias foi responsavel pelo estabelecimento de vários arraiais, desbravando verdadeiramente regiões que não eram conhecidas por europeus.
Sua bandeira, entretanto, não viveu momentos sempre gloriosos. Composta por seu filho Garcia Rodrigues Pais, Matias Cardoso de Almeida, seu genro, Manuel Borba Gato e seu filho bastardo, José Dias Pais, padeceu de um incidente de insurreição levantado por esse último, que acusado de traição, foi condenado à morte e enforcado por seus companheiros.
Imaginando ter encontrado esmeraldas, a bandeira regressa e antes dela chega a notícia do seu êxito. Fernão Dias morre mesmo acreditando ter encontrado esmeraldas, mas na verdade tratava-se de turmalinas, gemas que quase não tem valor.
A saga deste célebre bandeirante paulista talvez tenha sido o motivo do batismo desse edifício como "Turmalinas", remetendo ao fato de ser uma jóia, sim, mas uma jóia de valor menor, que não merece tanto apego quanto parece à primeira vista.
Se a idéia foi essa, não deixa de soar estranho morar num lugar que tenha esse espírito. Como se respondesse à alguém que pergunta: "moro nas 'Turmalinas', aquele edifício que parece uma esmeralda, mas é só uma gema de menor valor". Acho quase impossível alguém responder isso, na verdade, mas se eu morasse lá e alguém me perguntasse, eu iria sempre pensar nessa resposta e seria dificílimo responder: "moro nas "Turmalinas", aquele edifício em frente à praça de São Mateus".
Mas o que parece no fim das contas é que estou abstraindo demais, talvez porque seja um entusiasta da saga de Fernão Dias, talvez por sempre procurar sentido nos nomes das coisas, o mais razoável é pensar que a idéia desse nome ao edifício foi quase ao acaso, o batizador, por misteriosas e pessoais razões, gosta desse nome, quando muito de turmalinas, e achou que seria bastante e suficiente esse nome e essa é a melhor das apostas.
Da minha parte, entretanto, nunca moraria nesse prédio.
segunda-feira, março 07, 2005
Política, poder e alienação da natureza
Na cidade antiga todas as famílias eram de descendentes de fundadores da cidade, o contato com o estrangeiro era uma praga que se evitava a todo custo e o emaranhado das leis que serviam para guiar o comportamento de todos era sagrado, não sendo conhecido senão pelos sacerdotes.
Como toda instituição humana, entretanto, esse modelo de sociedade envelheceu e a própria ordem de brutalidade e violência entre as cidades fez surgir escravos e plebeus no seu meio - pessoas que não pertenciam à cidade, não eram membros de nenhuma família e lá não tinham seus manes, ou seja, seus ancestrais a quem deviam culto sob a condição de ser por eles perseguidos no caso de omissão desse dever.
A cidade de Roma, entretanto, algo como que um século após o fim da monarquia, viu-se na hipóstese de não ter mais plebeus, já que despojados do direito da cidade, absolutamente sem garantias e sendo hostilizados por todas as formas imagináveis, decidiram todos partir para fora dos muros da cidade, indo estabelecer-se no monte sagrado.
Os patrícios celebraram de início a pureza reconquistada da gente romana, formada exclusivamente pelas famílias dos fundadores da cidade e seus clientes (espécie de servos ligados pela religião à família). Entretanto, logo começaram a surgir rumores de que a saída da plebe seria ruim aos propósitos de ambição romana: "como defender-se dos etruscos, dos sabinos, dos outros latinos? Apenas os patrícios não bastariam para tanto e Roma fatalmente seria destruída." Trata-se de um argumento inflamado se considerar-se que Roma era bastante forte para manter-se sozinha, mas sem a plebe não avançaria mais e aqui está o ponto decisivo de toda a questão: a ambição por dominar, subjugar e expandir-se.
A plebe, doutra maneira, não tinha leis, religião, organização de classes e assim, vivia a esmo no monte sagrado, como um bando de cabras inconseqüentes sobre um pasto que não será suficiente para elas por muito tempo, mas que não parecem se importar com isso enquanto pastam. A plebe precisava de Roma, da sua organização social, da religião (mesmo que de modo grosseiro, visto que não poderiam ter deuses lares, já que não descendiam de ninguém).
Assim, o senado romano decidiu chamar de volta a plebe e fez de seus componentes cidadãos romanos.
Pedra no cruzamento da vida, o senado romano tinha tomado sua decisão mais importante em séculos inteiros, uma decisão que asseguraria o constante crescimento do maior império que existiu sobre a terra e ao mesmo tempo o germe maligno que destruiria implacavelmente, ano após ano, a pureza da origem da civilização ocidental, desfazendo a crença no culto dos ancestrais, dos deuses lares, na sacralidade das leis, substituindo o personagem social da família da pátria ou gens (família de origem do fundador da cidade) para a qual toda a vida social voltava-se, para o indivíduo, transmutando da propriedade seu valor sagrado ligado à gens, ou seja, ligado às origens da famílias, a propriedade e o solo eram o símbolo do sangue que se ergue da terra, daí em diante a propriedade adquire pela primeira vez seu valor individual e ordinário que transmuta de mão em mão sem nenhum tipo de formalidade ou significado maior que facilitar trocas e aprofundar diferenças entre classes. Pela primeira vez no ocidente o homem passou a valer pelo que tinha e não pelo que era.
Em troca dessa decisão, Roma ganhou o mundo inteiro nos séculos seguintes, mas perdeu para sempre sua alma, razão inclusive de sua decadência, já que o romano em origem era um fiel seguidor da fé dos seus deuses lares, vivia obedecendo à religião e padeceu pela crise moral e pela falta de crença em si mesma, agonizava sobre os palácios de mármore de Carrara como um sopro sujo de sua alma gloriosa, guerreira, plena de fé e da pretensa verdade de ser a mãe e o centro do mundo todo.
Como toda instituição humana, entretanto, esse modelo de sociedade envelheceu e a própria ordem de brutalidade e violência entre as cidades fez surgir escravos e plebeus no seu meio - pessoas que não pertenciam à cidade, não eram membros de nenhuma família e lá não tinham seus manes, ou seja, seus ancestrais a quem deviam culto sob a condição de ser por eles perseguidos no caso de omissão desse dever.
A cidade de Roma, entretanto, algo como que um século após o fim da monarquia, viu-se na hipóstese de não ter mais plebeus, já que despojados do direito da cidade, absolutamente sem garantias e sendo hostilizados por todas as formas imagináveis, decidiram todos partir para fora dos muros da cidade, indo estabelecer-se no monte sagrado.
Os patrícios celebraram de início a pureza reconquistada da gente romana, formada exclusivamente pelas famílias dos fundadores da cidade e seus clientes (espécie de servos ligados pela religião à família). Entretanto, logo começaram a surgir rumores de que a saída da plebe seria ruim aos propósitos de ambição romana: "como defender-se dos etruscos, dos sabinos, dos outros latinos? Apenas os patrícios não bastariam para tanto e Roma fatalmente seria destruída." Trata-se de um argumento inflamado se considerar-se que Roma era bastante forte para manter-se sozinha, mas sem a plebe não avançaria mais e aqui está o ponto decisivo de toda a questão: a ambição por dominar, subjugar e expandir-se.
A plebe, doutra maneira, não tinha leis, religião, organização de classes e assim, vivia a esmo no monte sagrado, como um bando de cabras inconseqüentes sobre um pasto que não será suficiente para elas por muito tempo, mas que não parecem se importar com isso enquanto pastam. A plebe precisava de Roma, da sua organização social, da religião (mesmo que de modo grosseiro, visto que não poderiam ter deuses lares, já que não descendiam de ninguém).
Assim, o senado romano decidiu chamar de volta a plebe e fez de seus componentes cidadãos romanos.
Pedra no cruzamento da vida, o senado romano tinha tomado sua decisão mais importante em séculos inteiros, uma decisão que asseguraria o constante crescimento do maior império que existiu sobre a terra e ao mesmo tempo o germe maligno que destruiria implacavelmente, ano após ano, a pureza da origem da civilização ocidental, desfazendo a crença no culto dos ancestrais, dos deuses lares, na sacralidade das leis, substituindo o personagem social da família da pátria ou gens (família de origem do fundador da cidade) para a qual toda a vida social voltava-se, para o indivíduo, transmutando da propriedade seu valor sagrado ligado à gens, ou seja, ligado às origens da famílias, a propriedade e o solo eram o símbolo do sangue que se ergue da terra, daí em diante a propriedade adquire pela primeira vez seu valor individual e ordinário que transmuta de mão em mão sem nenhum tipo de formalidade ou significado maior que facilitar trocas e aprofundar diferenças entre classes. Pela primeira vez no ocidente o homem passou a valer pelo que tinha e não pelo que era.
Em troca dessa decisão, Roma ganhou o mundo inteiro nos séculos seguintes, mas perdeu para sempre sua alma, razão inclusive de sua decadência, já que o romano em origem era um fiel seguidor da fé dos seus deuses lares, vivia obedecendo à religião e padeceu pela crise moral e pela falta de crença em si mesma, agonizava sobre os palácios de mármore de Carrara como um sopro sujo de sua alma gloriosa, guerreira, plena de fé e da pretensa verdade de ser a mãe e o centro do mundo todo.
sexta-feira, março 04, 2005
Franja desaparecida
Andava de volta para casa ontem, chovia a continuada chuva de fim de verão, quando revi de relance uma conhecida da faculdade que adorava discutir comigo sobre o valor da vida e sua questão utilitária ante aos valores da democracia e da maioria, na célebre máxima de que "a maioria pode muito, mas não pode tudo", trata-se de ninguém menos que a senhorita Janaína Brulheres.
Com os cabelos presos num longo rabo de cavalo, não tinha mais franja nem optava então pela saia laranja e grená que ficava a meio palmo do joelho, também não tinha camiseta estampada... séria e apressada descendo a avenida dos Andradas, vestia cinza no tailer, com uma camisa feminina num azul bem claro, sapatos pretos de salto médio. Pareceu de relance a metamorfose em transe daquela moça recém-saída da adolescência que eu conheci - nem tão seca e sem vida e nem tão molhada e alegre.
Lembrei-me das suas reclamações comigo na cantina quando suas notas caiam na medida que os seus namorados (no meu último ano de faculdade 2 se alternaram, sempre espaçando o tempo de um mês entre o fim com um e o recomeço com o outro) brigavam entre si e com ela também. Um, chamado André, engenheiro com pai dono de empreiteira e sem talento para engenharia, adorava a maneira como Janaína o desprezava antes de beijá-lo, nas palavras dela "aninha a cabeça no colo e parece não entender que eu não o amo, como se perguntasse para si mesmo 'como ela pode não me amar?' achando-se o melhor produto da prateleira", eu mesmo não gostava quando ela usava esse palavreado de chamar esse rapaz de "produto", mas não interrompia por medo de ceifar aquele momento de frustração e paixão não admitida dela. O outro era quase meu amigo, tinha mesmo boa simpatia por ele, o bom e sincero João Guilherme, freqüentador das boates de má fama nas noites de tristeza, melancólico leitor de Fernando Pessoa, graduando de odontologia que abria as bocas dos pacientes pensando sempre numa mesma boca, na da sua amada Janaína e essa moça, pensando nele, aduzia aos bons lábios para os beijos, ao olhar de incendiar o quarteirão na fúria de frustração, na paciência para falar, na grandissíssima habilidade, invejada por todos os lados no campus universitário, em não demonstrar nunca ciúmes, conversando comigo ele dizia: "há que endurecer, mas sem demonstrar ciúmes jamais!", sofria, é claro, como todo namorado de moça bonita e interessante, mas guardava para si, como tantas outras coisas.
A Janaína olhava para mim e falava que não tinha mais para onde ir nesse mundo, que queria viver com os dois, dar felicidade a ambos, queria que fossem amigos e pensou num plano mirabolante de pedir ao André que conseguisse com o pai dele um apartamento bem grande para os três viverem juntos! Como se estar juntos fosse o bastante para resolver aquele nó górgio que estava dentro do coração dela. Eles a queriam só pra si mesmos, separadamente! Que fique claro! E se tinha que ser assim, se essa paixão de onde e de quando e de como era tão complicada que não tinha saída, Janaína cortou tudo com a espada e deixou cair no chão: nem André, nem João Guilherme, só Janaína, Janaína só.
Da última vez que falamos, poucas semanas antes da minha formatura, ela ainda parecia tão vivaz, tão cheia das bocas e caras que sempre me deixaram tão à vontade de estar com ela, mas também confusa e abatida entre um assunto e outro, enquanto que cada sugestão parecia deixá-la imensamente cansada. Claro, desta última vez estava bem grande a franja.
Quando eu a vi na rua, de repente, a franja já tinha desaparecido. Compondo sua face engajada no mundo de escritórios onde saias laranja e grená são absurdas, Janaína Brulhures estava vestida de mulher para ser levada a sério, pois é sério o fato de no seu coração não haver mais amor nenhum, estava num luto, portanto, e foi assim que sua imagem me pareceu no fim de dia chuvoso e frio do fim do verão. E como o verão, que acaba sem se importar com os órfãos, aquela abundância de amor e desejo de tudo foi embora sem se importar com o sofrimento que sobraria e das marcas de ausência que deixaria na pele dela para provar a audácia de querer toda a felicidade e além.
Com os cabelos presos num longo rabo de cavalo, não tinha mais franja nem optava então pela saia laranja e grená que ficava a meio palmo do joelho, também não tinha camiseta estampada... séria e apressada descendo a avenida dos Andradas, vestia cinza no tailer, com uma camisa feminina num azul bem claro, sapatos pretos de salto médio. Pareceu de relance a metamorfose em transe daquela moça recém-saída da adolescência que eu conheci - nem tão seca e sem vida e nem tão molhada e alegre.
Lembrei-me das suas reclamações comigo na cantina quando suas notas caiam na medida que os seus namorados (no meu último ano de faculdade 2 se alternaram, sempre espaçando o tempo de um mês entre o fim com um e o recomeço com o outro) brigavam entre si e com ela também. Um, chamado André, engenheiro com pai dono de empreiteira e sem talento para engenharia, adorava a maneira como Janaína o desprezava antes de beijá-lo, nas palavras dela "aninha a cabeça no colo e parece não entender que eu não o amo, como se perguntasse para si mesmo 'como ela pode não me amar?' achando-se o melhor produto da prateleira", eu mesmo não gostava quando ela usava esse palavreado de chamar esse rapaz de "produto", mas não interrompia por medo de ceifar aquele momento de frustração e paixão não admitida dela. O outro era quase meu amigo, tinha mesmo boa simpatia por ele, o bom e sincero João Guilherme, freqüentador das boates de má fama nas noites de tristeza, melancólico leitor de Fernando Pessoa, graduando de odontologia que abria as bocas dos pacientes pensando sempre numa mesma boca, na da sua amada Janaína e essa moça, pensando nele, aduzia aos bons lábios para os beijos, ao olhar de incendiar o quarteirão na fúria de frustração, na paciência para falar, na grandissíssima habilidade, invejada por todos os lados no campus universitário, em não demonstrar nunca ciúmes, conversando comigo ele dizia: "há que endurecer, mas sem demonstrar ciúmes jamais!", sofria, é claro, como todo namorado de moça bonita e interessante, mas guardava para si, como tantas outras coisas.
A Janaína olhava para mim e falava que não tinha mais para onde ir nesse mundo, que queria viver com os dois, dar felicidade a ambos, queria que fossem amigos e pensou num plano mirabolante de pedir ao André que conseguisse com o pai dele um apartamento bem grande para os três viverem juntos! Como se estar juntos fosse o bastante para resolver aquele nó górgio que estava dentro do coração dela. Eles a queriam só pra si mesmos, separadamente! Que fique claro! E se tinha que ser assim, se essa paixão de onde e de quando e de como era tão complicada que não tinha saída, Janaína cortou tudo com a espada e deixou cair no chão: nem André, nem João Guilherme, só Janaína, Janaína só.
Da última vez que falamos, poucas semanas antes da minha formatura, ela ainda parecia tão vivaz, tão cheia das bocas e caras que sempre me deixaram tão à vontade de estar com ela, mas também confusa e abatida entre um assunto e outro, enquanto que cada sugestão parecia deixá-la imensamente cansada. Claro, desta última vez estava bem grande a franja.
Quando eu a vi na rua, de repente, a franja já tinha desaparecido. Compondo sua face engajada no mundo de escritórios onde saias laranja e grená são absurdas, Janaína Brulhures estava vestida de mulher para ser levada a sério, pois é sério o fato de no seu coração não haver mais amor nenhum, estava num luto, portanto, e foi assim que sua imagem me pareceu no fim de dia chuvoso e frio do fim do verão. E como o verão, que acaba sem se importar com os órfãos, aquela abundância de amor e desejo de tudo foi embora sem se importar com o sofrimento que sobraria e das marcas de ausência que deixaria na pele dela para provar a audácia de querer toda a felicidade e além.
terça-feira, março 01, 2005
Além do Bojador
Penso nas ambições guardadas dentro do peito. Em segredo imagino que elas conversam entre si. Discutem sobre seus pais: as paixões de que nasceram; elogiam-se mutuamente, guardando uma inveja secreta; riem todas juntas quando aquele que as hospeda no nicho mais sagrado da sua alma resolve alimentar a qualquer delas; choram todas juntas quando esse anfitrião expulsa alguma do coração, deixando-o mais leve, e talvez mais perdido também.
Ambicionar fortuna, reconhecimento, beleza, felicidade... ambicionar ou simplesmente viver, opções igualmente perigosas e igualmente tentadoras. Como seria confortável não desejar nada além de repouso, alimento e sexo: as três necessidades essenciais de um ser humano. De outro lado, as paixões que temos fazem as ambições nossas senhoras e obedecemos cegamente, porque de alguma maneira é prazeroso satisfazer às paixões e ver-nos maiores ou melhores que os outros.
E por ver tanta radicalidade nas coisas do mundo, tanta opressão sem poesia e sem fé, há momentos que sinto toda essa tristeza em mim. Penso na pobreza, na exclusão social, na ignorância, na luxúria, no orgulho, na malícia... um rio imenso, de perder de vista a outra margem, seguindo rumo a um mar não alcança, segue sempre cheio de sujeira, sempre poluído, sempre carregado de determinismo e lágrimas de chumbo.
Suspiro, relaxo, vejo alguma beleza e tento levantar os olhos, e então lembro da minha menina que é sempre tão doce comigo, tão sincera, tão querida. Talvez a rapidez dessa alegria fosse capaz de me tirar da grande cilada da autocompaixão, mas eu morro de medo de trazê-la para dentro desta espiral assassina que gira sem parar dentro da minha cabeça. Incluir seus doces sonhos nas estantes onde repousam as cinzas do que um dia foram os meus, e dar aos seus olhos a visão generosa de não ter medo de nada, ah! visão que eu persigo com tanta sanha! Paixão de ter paz.
Fica bem quietinha cá comigo, entretanto. Fica comigo que através dos olhos dela busco a alavanca que faça parar essa espiral de medo, busco essa resposta para o meu desassossego de não saber, mergulho sem dizer uma palavra na generosidade do seu coração e lá do fundo escuto ecos amorosos que aquecem o frio impertinente da madrugada da minha vida e repetem docemente aquelas suas palavras: "não se preocupe."
A paixão, desta segurança de sentir o amor, desperta a ambição de alimentá-la com todos os esforços, nutri-la de cuidados, cercá-la de zelo e de atenção, submetê-la à fabrica de sonhos da cabeça e fazer surgir dela um lindo adereço para minha vida que traga o nome do meu amor gravado com bastante destaque para que sempre que eu olhe para ele saiba que não preciso mais ter medo de andar pelos becos escuros sem ter a quem perguntar: "o que faço com a minha vida?"
Eu sei, sabendo isso com grande felicidade, que ela diria "vive, simplesmente vive", daí, mais leve por abandonar outra ambição má enquanto abraçava essa nova não menos perigosa, eu viveria além do Bojador e talvez além da dor de sentir.
Hoje, num espetáculo quase demente, minhas ambições choram e riem ao mesmo tempo.
Ambicionar fortuna, reconhecimento, beleza, felicidade... ambicionar ou simplesmente viver, opções igualmente perigosas e igualmente tentadoras. Como seria confortável não desejar nada além de repouso, alimento e sexo: as três necessidades essenciais de um ser humano. De outro lado, as paixões que temos fazem as ambições nossas senhoras e obedecemos cegamente, porque de alguma maneira é prazeroso satisfazer às paixões e ver-nos maiores ou melhores que os outros.
E por ver tanta radicalidade nas coisas do mundo, tanta opressão sem poesia e sem fé, há momentos que sinto toda essa tristeza em mim. Penso na pobreza, na exclusão social, na ignorância, na luxúria, no orgulho, na malícia... um rio imenso, de perder de vista a outra margem, seguindo rumo a um mar não alcança, segue sempre cheio de sujeira, sempre poluído, sempre carregado de determinismo e lágrimas de chumbo.
Suspiro, relaxo, vejo alguma beleza e tento levantar os olhos, e então lembro da minha menina que é sempre tão doce comigo, tão sincera, tão querida. Talvez a rapidez dessa alegria fosse capaz de me tirar da grande cilada da autocompaixão, mas eu morro de medo de trazê-la para dentro desta espiral assassina que gira sem parar dentro da minha cabeça. Incluir seus doces sonhos nas estantes onde repousam as cinzas do que um dia foram os meus, e dar aos seus olhos a visão generosa de não ter medo de nada, ah! visão que eu persigo com tanta sanha! Paixão de ter paz.
Fica bem quietinha cá comigo, entretanto. Fica comigo que através dos olhos dela busco a alavanca que faça parar essa espiral de medo, busco essa resposta para o meu desassossego de não saber, mergulho sem dizer uma palavra na generosidade do seu coração e lá do fundo escuto ecos amorosos que aquecem o frio impertinente da madrugada da minha vida e repetem docemente aquelas suas palavras: "não se preocupe."
A paixão, desta segurança de sentir o amor, desperta a ambição de alimentá-la com todos os esforços, nutri-la de cuidados, cercá-la de zelo e de atenção, submetê-la à fabrica de sonhos da cabeça e fazer surgir dela um lindo adereço para minha vida que traga o nome do meu amor gravado com bastante destaque para que sempre que eu olhe para ele saiba que não preciso mais ter medo de andar pelos becos escuros sem ter a quem perguntar: "o que faço com a minha vida?"
Eu sei, sabendo isso com grande felicidade, que ela diria "vive, simplesmente vive", daí, mais leve por abandonar outra ambição má enquanto abraçava essa nova não menos perigosa, eu viveria além do Bojador e talvez além da dor de sentir.
Hoje, num espetáculo quase demente, minhas ambições choram e riem ao mesmo tempo.
quinta-feira, fevereiro 24, 2005
Meu herói
A memória mais antiga que eu tenho é a de tentar alcançar meu pai quando ele saía de manhã para ir trabalhar. Ficava tentando correr e alcançar a porta antes que a babá me impedisse de sair, infelizmente eu nunca venci essa corrida, sempre atônito por sentir pelas primeiras vezes na vida o terror sem medida da perspectiva de perder quem se ama.
Lembro também quando meu pai voltava e da alegria que eu tinha em vê-lo, afinal não tinha desaparecido no mundo. Bem ao contrário, sempre foi muito fácil encontrá-lo, sempre a cuidar de seus negócios, junto de seus empregados, na casa da mãe num fim de tarde para tomar o seu precioso café.
Entre nós esse mesmo homem parecia menos agitado, embora sempre muito sereno. Deu-me por essas observações a postura de discrição e zelo que tenho tão bem impressas no meu jeito, seu pudor incomensurável em ferir, sua grande gentileza com todos, sua piedade feita de sensibilidade e materializada aos merecedores e aos não-merecedores dela.
Meu pai nunca foi um sujeito emotivo e exagerado, mas nunca deixou de dizer que nos amava. Dizia-o nos gestos de desprendimento, dizia-o no apoio às decisões, dizia-o no orgulho que só admitiu uma vez quando eu já era homem ao ver-me colar o grau de bacharel há uns poucos meses.
Uma vez quando eu contava com meus 11 anos, brincando num galpão do sítio, tive a brilhante idéia de tentar abrir uma porta de frigorífico de uns 300 quilos que estava encostada na parede. A minha alavanca só serviu para fazê-la tombar sobre o meu corpo implacavelmente e só fui salvo porque do meu lado esquerdo havia um saco de café que criou um vão entre a porta e eu, mas esse bendito saco de café não impediu que eu ficasse preso na porta tombada. Para piorar a queda no chão acabou por cortar o couro cabeludo na nuca, de modo que a ferida sangrava muito.
Depois de gritar por socorro 5 minutos seguidos, apareceu um dos empregados do sítio que chamou outros e meu pai. Meu pai olhando a cena perguntou se eu me sentia bem, se sentia todas as partes do corpo e eu disse que sim, acho que ele manteve a calma porque eu estava consciente, mas de todo jeito ele dificilmente teria perdido o controle, qualquer que fosse o caso.
Levantou a porta com a ajuda de outro homem, olhou minha nuca e com um lenço limpou o sangue e segurando sobre o ferimento para estancar a sangria, carregou-me até o carro, dizendo ríspidamente, mas sem gritar: "abram caminho".
Depois de levar lá uns 5 pontos e ir pra casa, mais anoite via meu pai falando que a minha curiosidade em tentar abrir uma porta de frigorífico de 300 quilos encostada na parede era pela minha capacidade investigativa, sim, o método é que era arriscado, mas investigar portas é algo completamente normal! Sempre ficava imaginando a terrível condição de ter que agir nesses casos e desejava bem fundo agir sempre como meu pai, com calma, precisão e uma elegância em saber que é a pessoa certa a estar no lugar exato.
Quis por toda vida guardar tão serenamente a tristeza para mim sem entristecer os outros, quis nunca deixar os outros verem-me chorar só para não fazer crescer a dor deles, quis tocar a fragilidade de tudo com tanta decisão e praticidade, mas quis tudo inutilmente, pois ao contrário do meu pai eu não sou um homem de poucas palavras e tampouco de evitar sempre todos os exageros. Ainda assim guardo essas verdades com muito zelo e associo cada uma dessas nobres virtudes ao meu bom pai.
Esse homem simples, discreto, a viver sempre sem ambições maiores que a paz de não ter de brigar ou discutir, a segurança de ter a felicidade dos seus, o prazer de andar na sua moto de 450 cilindradas e fumar seus cigarros com os botões da camisa abertos, nunca disse que me ama e nem precisa.
Lembro também quando meu pai voltava e da alegria que eu tinha em vê-lo, afinal não tinha desaparecido no mundo. Bem ao contrário, sempre foi muito fácil encontrá-lo, sempre a cuidar de seus negócios, junto de seus empregados, na casa da mãe num fim de tarde para tomar o seu precioso café.
Entre nós esse mesmo homem parecia menos agitado, embora sempre muito sereno. Deu-me por essas observações a postura de discrição e zelo que tenho tão bem impressas no meu jeito, seu pudor incomensurável em ferir, sua grande gentileza com todos, sua piedade feita de sensibilidade e materializada aos merecedores e aos não-merecedores dela.
Meu pai nunca foi um sujeito emotivo e exagerado, mas nunca deixou de dizer que nos amava. Dizia-o nos gestos de desprendimento, dizia-o no apoio às decisões, dizia-o no orgulho que só admitiu uma vez quando eu já era homem ao ver-me colar o grau de bacharel há uns poucos meses.
Uma vez quando eu contava com meus 11 anos, brincando num galpão do sítio, tive a brilhante idéia de tentar abrir uma porta de frigorífico de uns 300 quilos que estava encostada na parede. A minha alavanca só serviu para fazê-la tombar sobre o meu corpo implacavelmente e só fui salvo porque do meu lado esquerdo havia um saco de café que criou um vão entre a porta e eu, mas esse bendito saco de café não impediu que eu ficasse preso na porta tombada. Para piorar a queda no chão acabou por cortar o couro cabeludo na nuca, de modo que a ferida sangrava muito.
Depois de gritar por socorro 5 minutos seguidos, apareceu um dos empregados do sítio que chamou outros e meu pai. Meu pai olhando a cena perguntou se eu me sentia bem, se sentia todas as partes do corpo e eu disse que sim, acho que ele manteve a calma porque eu estava consciente, mas de todo jeito ele dificilmente teria perdido o controle, qualquer que fosse o caso.
Levantou a porta com a ajuda de outro homem, olhou minha nuca e com um lenço limpou o sangue e segurando sobre o ferimento para estancar a sangria, carregou-me até o carro, dizendo ríspidamente, mas sem gritar: "abram caminho".
Depois de levar lá uns 5 pontos e ir pra casa, mais anoite via meu pai falando que a minha curiosidade em tentar abrir uma porta de frigorífico de 300 quilos encostada na parede era pela minha capacidade investigativa, sim, o método é que era arriscado, mas investigar portas é algo completamente normal! Sempre ficava imaginando a terrível condição de ter que agir nesses casos e desejava bem fundo agir sempre como meu pai, com calma, precisão e uma elegância em saber que é a pessoa certa a estar no lugar exato.
Quis por toda vida guardar tão serenamente a tristeza para mim sem entristecer os outros, quis nunca deixar os outros verem-me chorar só para não fazer crescer a dor deles, quis tocar a fragilidade de tudo com tanta decisão e praticidade, mas quis tudo inutilmente, pois ao contrário do meu pai eu não sou um homem de poucas palavras e tampouco de evitar sempre todos os exageros. Ainda assim guardo essas verdades com muito zelo e associo cada uma dessas nobres virtudes ao meu bom pai.
Esse homem simples, discreto, a viver sempre sem ambições maiores que a paz de não ter de brigar ou discutir, a segurança de ter a felicidade dos seus, o prazer de andar na sua moto de 450 cilindradas e fumar seus cigarros com os botões da camisa abertos, nunca disse que me ama e nem precisa.
quarta-feira, fevereiro 23, 2005
Um pouco antes do encontro
Um homem que não permite que outros façam suas escolhas todo o tempo é confrontado com um momento de encontro, já que vai compreender se agiu mal em ser tão franco consigo e com os outros, ou se deveria deixar que outro escolhesse para que depois, no caso de não dar certo, poder culpá-lo.
É preciso ter no peito, antes de um crucifixo de ouro para encorajar, um coração suficientemente forte para agüentar as fortes ondas de expansão vindas daquele encontro, flexões que estendem-se sempre, muito ou pouco para além do seu epicentro, mas sempre expandem-se. Como que numa arrebentação de maré, é preciso dar o corpo à sua agressividade e deixá-la atravessá-lo, rezando para que não morra afogado pela força bruta.
Pode-se também tentar ignorar as conseqüências de um encontro, como que furando a onda, se voltarmos à nossa metáfora, e é uma opção bem prática, já que não há mesmo risco de afogamento, ou qualquer trauma e quando emerge-se do mergulho, olhar para trás e ver a onda indo morrer.
Não vale querer compreender as conseqüências se elas não existirem, já que se sobre se é apenas uma conjunção de historiadores bêbados. Melhor é compreender esse não saber do encontro, essa sensação tão boa de estar prestes a experimentar algo tão novo e tão original que tudo o que veio antes poderá ser diferente, estar diante de um desafio de vida ou morte e sentir o coração feliz por estar na arena e orgulhar-se dessa coragem.
É bem assim quando se recebe uma notícia esperada, ou também quando decide-se o destino numa sentença incerta, ou também, e aqui de uma maneira muito mais bonita e mais profunda, quando encontra-se alguém que desperta sentimentos grandes.
Em mim os encontros são sempre marcantes demais e tenho de todos os meus a certeza de que minha vida provou a integridade de suspirar. O corpo também responde a esse momento e pode ser percebido pela teimosia das pálpebras em não piscar, ficar abertas é sua momentânea obceção, como se os olhos estivessem memorizando aquele instante, compõe a feição a irresistível vontade de sorrir, como se fosse mesmo uma obrigação dizer a todos "vejam como eu estou feliz!" e enquanto essa cara de bobo transparece para quem olhar, as palavras do possível discurso tão pensado simplesmente são deixadas por um emaranhado de expressões e suspiros presos e além, a grande vontade de não estar ali acaba sendo esquecida completamente por uma satisfação em ter terminado a expectativa e uma alegria em compreender a vida tão simples quanto esse encontro.
No reencontro acontece o mesmo, mas de uma maneira um pouco diferente, não há mais a expectativa de saber como será ou o que vai acontecer, há a curiosidade de saber se mudou, se na cabeça tem-se ainda a imagem do que é ou se as mirabolantes constatações sobre ser e não ser, sobre querer e poder romperam a barreira da estratosfera e estão num plano do imaginário tão absurto que é vizinho da crença de que o coelhinho da Páscoa existe. Mas de todo jeito é maravilhoso estar com alguém que se ama, e o reencontro supera toda insegurança para existir como um marco fundamental naquela relação humana.
Nesse turbilhão de idéias e expectativas há ainda uma boa dose de desprezo pelo que pode ser na medida de abstrair-se à tensão de uma inversão de polaridade nas prerrogativas e interesses, na revolução sangrenta que nasce desses instantes tão inocentes e sem muito alarde.
De tanta emoção, de tanto êxtase, se ainda houver dúvidas sobre o provável destino disso tudo, o melhor é um bom banho quente seguido da apreciação de um tango de Carlos Gardel, sim o grande mestre uruguaio. Depois de mergulhar na voz que lamenta e implora, até o gato Felix concluiria que seu pêlo vale menos que encontrar a razão de tantas encrencas e o arriscaria sem pestanejar.
É preciso ter no peito, antes de um crucifixo de ouro para encorajar, um coração suficientemente forte para agüentar as fortes ondas de expansão vindas daquele encontro, flexões que estendem-se sempre, muito ou pouco para além do seu epicentro, mas sempre expandem-se. Como que numa arrebentação de maré, é preciso dar o corpo à sua agressividade e deixá-la atravessá-lo, rezando para que não morra afogado pela força bruta.
Pode-se também tentar ignorar as conseqüências de um encontro, como que furando a onda, se voltarmos à nossa metáfora, e é uma opção bem prática, já que não há mesmo risco de afogamento, ou qualquer trauma e quando emerge-se do mergulho, olhar para trás e ver a onda indo morrer.
Não vale querer compreender as conseqüências se elas não existirem, já que se sobre se é apenas uma conjunção de historiadores bêbados. Melhor é compreender esse não saber do encontro, essa sensação tão boa de estar prestes a experimentar algo tão novo e tão original que tudo o que veio antes poderá ser diferente, estar diante de um desafio de vida ou morte e sentir o coração feliz por estar na arena e orgulhar-se dessa coragem.
É bem assim quando se recebe uma notícia esperada, ou também quando decide-se o destino numa sentença incerta, ou também, e aqui de uma maneira muito mais bonita e mais profunda, quando encontra-se alguém que desperta sentimentos grandes.
Em mim os encontros são sempre marcantes demais e tenho de todos os meus a certeza de que minha vida provou a integridade de suspirar. O corpo também responde a esse momento e pode ser percebido pela teimosia das pálpebras em não piscar, ficar abertas é sua momentânea obceção, como se os olhos estivessem memorizando aquele instante, compõe a feição a irresistível vontade de sorrir, como se fosse mesmo uma obrigação dizer a todos "vejam como eu estou feliz!" e enquanto essa cara de bobo transparece para quem olhar, as palavras do possível discurso tão pensado simplesmente são deixadas por um emaranhado de expressões e suspiros presos e além, a grande vontade de não estar ali acaba sendo esquecida completamente por uma satisfação em ter terminado a expectativa e uma alegria em compreender a vida tão simples quanto esse encontro.
No reencontro acontece o mesmo, mas de uma maneira um pouco diferente, não há mais a expectativa de saber como será ou o que vai acontecer, há a curiosidade de saber se mudou, se na cabeça tem-se ainda a imagem do que é ou se as mirabolantes constatações sobre ser e não ser, sobre querer e poder romperam a barreira da estratosfera e estão num plano do imaginário tão absurto que é vizinho da crença de que o coelhinho da Páscoa existe. Mas de todo jeito é maravilhoso estar com alguém que se ama, e o reencontro supera toda insegurança para existir como um marco fundamental naquela relação humana.
Nesse turbilhão de idéias e expectativas há ainda uma boa dose de desprezo pelo que pode ser na medida de abstrair-se à tensão de uma inversão de polaridade nas prerrogativas e interesses, na revolução sangrenta que nasce desses instantes tão inocentes e sem muito alarde.
De tanta emoção, de tanto êxtase, se ainda houver dúvidas sobre o provável destino disso tudo, o melhor é um bom banho quente seguido da apreciação de um tango de Carlos Gardel, sim o grande mestre uruguaio. Depois de mergulhar na voz que lamenta e implora, até o gato Felix concluiria que seu pêlo vale menos que encontrar a razão de tantas encrencas e o arriscaria sem pestanejar.
terça-feira, fevereiro 22, 2005
Qualquer coisa além da beleza
"O poeta/Essa criatura escravizada à beleza", escreveu Vinicius de Moraes na sua fase poética de identificação com o absoluto. Depois na sua linda canção "Samba da Bênção" descarrilou com mais maturidade na sua fase de cancioneiro: "Uma mulher quem que ter qualquer coisa além da beleza".
Sim, a beleza. Algo que fascina a todos, a simetria, a virilidade, a suavidade, a composição de cores, enfim, tudo o que compõe o que chamamos de belo. Tudo o que detem essa qualidade é por vezes admirado, mas até onde vai essa admiração pelo que é bonito? Será que é uma finalidade em si mesma?
A beleza é um componente que atrái, é fascinante mesmo ver algo muito bonito e pessoas bonitas também tem mais atenção dos outros, evidentemente. Depois desse primeiro momento será que as coisas tomam o rumo de bastar-se?
Não bastasse o tormento de que a beleza é fugaz, existe a grande verdade de que ela não se sustenta muito bem se vier sozinha. A beleza desamparada de um coração pulsante, de um sonho ardente, de uma ambição e de um orgulho fica estancada na sua pose. Como numa foto mal feita de uma beldade, essa constatação dá a impressão de um engano sobre a beleza, como que descoberta uma mentirinha das pequenas.
Mulheres bonitas, costuma-se dizer, conseguem tudo o que querem, principalmente se forem vazias, mas se conseguem mesmo, sofrem muito para atingir esses objetivos. Delas espera-se que estejam sempre maravilhosas, sempre sorrindo, sempre elegantes, sempre ideais para a idolatração. Mas quanto desespero no olhar delas se não dizemos que são lindas... quanta insegurança no coração! Escravizam-se ao que lhes dizem que tem, uma linda aparência e tantas delas não se preocupam em ser mais que isso, como eu adiantei, conseguem tudo o que querem. Mas chega o dia em que vão querer mais, o tempo é um instituto arrogante e muda tudo todo o tempo e coincidentemente com essa necessidade de ser mais do que parecer vai-se a beleza, e sobram os desenganos.
Sinto uma tristeza por elas, uma agonia e ao mesmo tempo um desprezo por serem tão vazias no mais das vezes, tão ignorantes da realidade desse mundo sem respeito e sem delicadeza. Fico imaginando as desilusões das meninas bonitas, perguntam-se o que houve, quem traiu quem, de quem foi a culpa (como juristas também não são muito boas, diga-se de passagem).
Uma mulher de verdade tem que ter mesmo qualquer coisa além da beleza, ser como o mar em relação a um balde d'água: apresentar algum mistério, algum imprevisto nas suas águas, ter em si a razão do princípio e do fim de cada coisa no poder discreto e latente em suas ondas, insinuado na inabalável certeza em saber-se tão maior que tudo e mesmo assim ser apenas aquela que molha suavemente a praia, na tranqüilidade de aceitar a sua natureza, ter seus momentos de ressaca, sem mesmo precisar de álcool, e na explosão desta fúria, causar a certeza de que é apenas para demonstrar o quão forte é o seu coração e o quão profundos são seus sentimentos, intimidando todos os espertalhões que acham que podem nadar a qualquer hora nesse mar e descansar na previsibilidade de suas águas.
Um mar amplo, ilimitado, com seu horizonte a verter as luzes mais lindas da manhã ou da tarde, dando tudo de si e querendo tudo para si, um mar onde o navegar é uma aventura inebriantemente feliz e que conduz aos destinos, que por vezes ficam ofuscados nesse doce trajeto, tão certos de significado e de sorrisos quanto se pode ter certeza da fatalidade da vida.
Alguns homens conseguem a façanha bizarra de navegar em baldes, outros vêem que os baldes tem muito pouca água e precisam de mares.
Sim, a beleza. Algo que fascina a todos, a simetria, a virilidade, a suavidade, a composição de cores, enfim, tudo o que compõe o que chamamos de belo. Tudo o que detem essa qualidade é por vezes admirado, mas até onde vai essa admiração pelo que é bonito? Será que é uma finalidade em si mesma?
A beleza é um componente que atrái, é fascinante mesmo ver algo muito bonito e pessoas bonitas também tem mais atenção dos outros, evidentemente. Depois desse primeiro momento será que as coisas tomam o rumo de bastar-se?
Não bastasse o tormento de que a beleza é fugaz, existe a grande verdade de que ela não se sustenta muito bem se vier sozinha. A beleza desamparada de um coração pulsante, de um sonho ardente, de uma ambição e de um orgulho fica estancada na sua pose. Como numa foto mal feita de uma beldade, essa constatação dá a impressão de um engano sobre a beleza, como que descoberta uma mentirinha das pequenas.
Mulheres bonitas, costuma-se dizer, conseguem tudo o que querem, principalmente se forem vazias, mas se conseguem mesmo, sofrem muito para atingir esses objetivos. Delas espera-se que estejam sempre maravilhosas, sempre sorrindo, sempre elegantes, sempre ideais para a idolatração. Mas quanto desespero no olhar delas se não dizemos que são lindas... quanta insegurança no coração! Escravizam-se ao que lhes dizem que tem, uma linda aparência e tantas delas não se preocupam em ser mais que isso, como eu adiantei, conseguem tudo o que querem. Mas chega o dia em que vão querer mais, o tempo é um instituto arrogante e muda tudo todo o tempo e coincidentemente com essa necessidade de ser mais do que parecer vai-se a beleza, e sobram os desenganos.
Sinto uma tristeza por elas, uma agonia e ao mesmo tempo um desprezo por serem tão vazias no mais das vezes, tão ignorantes da realidade desse mundo sem respeito e sem delicadeza. Fico imaginando as desilusões das meninas bonitas, perguntam-se o que houve, quem traiu quem, de quem foi a culpa (como juristas também não são muito boas, diga-se de passagem).
Uma mulher de verdade tem que ter mesmo qualquer coisa além da beleza, ser como o mar em relação a um balde d'água: apresentar algum mistério, algum imprevisto nas suas águas, ter em si a razão do princípio e do fim de cada coisa no poder discreto e latente em suas ondas, insinuado na inabalável certeza em saber-se tão maior que tudo e mesmo assim ser apenas aquela que molha suavemente a praia, na tranqüilidade de aceitar a sua natureza, ter seus momentos de ressaca, sem mesmo precisar de álcool, e na explosão desta fúria, causar a certeza de que é apenas para demonstrar o quão forte é o seu coração e o quão profundos são seus sentimentos, intimidando todos os espertalhões que acham que podem nadar a qualquer hora nesse mar e descansar na previsibilidade de suas águas.
Um mar amplo, ilimitado, com seu horizonte a verter as luzes mais lindas da manhã ou da tarde, dando tudo de si e querendo tudo para si, um mar onde o navegar é uma aventura inebriantemente feliz e que conduz aos destinos, que por vezes ficam ofuscados nesse doce trajeto, tão certos de significado e de sorrisos quanto se pode ter certeza da fatalidade da vida.
Alguns homens conseguem a façanha bizarra de navegar em baldes, outros vêem que os baldes tem muito pouca água e precisam de mares.
segunda-feira, fevereiro 21, 2005
Todos deveriam saber
Ontem pensava se as pontas do mundo tem algum parentesco, pensamento talvez advindo da classe dos pensamentos que se tem depois de um bom almoço quando, sem pressa, pode-se descansar sem alardes nem prazos. É estranho imaginar que uma vaca tenha um valor aqui no Brasil e outro na Índia, como que abstraindo que cá esse animal é fornecedor de carne e leite, alimentos que compõem nossa dieta, lá é ligado por muitos cultos indianos à uma figura divina e que deve ser respeitada e reverenciada. Temos todos valores diferentes e não precisamos ir à Índia para compreender isso.
Na impressão de uma futura saudade, Priscila e eu fomos ao parque Halfeld tentar comprar a famosa pipoca do Trenzinho da Música Clássica, que fica em frente ao antigo palácio da prefeitura. Trata-se de uma pipoca especial, não qualquer pipocazinha que se faz em casa, pois tem um sabor diferente e um milho especial, é mais leve também, e no fim é mais divertido comer pipocas em parques que em frente à TV. Esqueci-me, entretanto, que domingo é dia de folga do pipoqueiro e ficamos um pouco frustrados, nada de mais, mas enfim, havia uma expectativa. Para não perder a viagem fomos passear um pouco pela rua Halfeld até a praça da Estação e depois na Antônio Carlos e nesse trajeto é que estalou-me de novo a noção dos disparates de valor.
Como de praxe a rua Halfeld estava cheia de ambulantes, mas estranhamente numa quantidade menor do que de costume, havia mesmo um certo ar de tristeza entre eles e tentei não me aprofundar em entender aquilo, mas na sanha de captar aquele ambiente, acabei deparando-me com uma capa de disco de vinil em que estava escrito "A arte de Vinicius de Moraes", evidentemente fui até lá ver o disco. Trata-se de um disco duplo lançado em 1976 que tem canções até então inéditas e declamação de poemas e inclusive da tocante crônica "Pedro, meu filho", é o caso de um disco que foi produzido por Vinicius de Moraes, um dos últimos, por sinal, e diferentemente dos que vieram depois de sua morte, funestos tributos, esse conta com sua sensibilidade de seleção e interpretação integrais.
O vendedor era uma daquelas figuras que parecem saídas de trás das portas com um punhal na mão, os olhos esbugalhados e a boca serrada, taciturno e quase monossilábico, respondeu à primeira pergunta com as palavras: "dez reais". De emenda, adiantou-se para dizer que o disco estava em perfeito estado, sem arranhões ou avarias, sem nenhum problema que pudesse comprometer o seu uso. Evidentemente eu estava calado porque não esperava encontrar aquele disco e tanto mais por aquele preço, já que é um disco raro, tem 29 anos e estava em excepcional estado de concervação. Por alguma razão, (talvez por ter pouco dinheiro na carteira) ainda pelejei por um preço mais baixo sentindo-me o pai de todos os caras-de-pau desse mundo e por fim paguei ao vendedor. Ainda fomos a um bar beber qualquer coisa e depois voltamos quando tava anoitecendo.
Em casa eu olhava para meu "A arte de Vinicius de Moraes" e pensava no prazer que seria ouvir aquilo que estava secretamente oculto nos dois discos pretos imensos. "Há um toca-discos na casa da minha mãe" foi o primeiro pensamento, e depois considerei ainda mais sobre como era um privilégio ter aquele disco, em como alguém poderia ter se desfeito dele, e pior: como alguém poderia vendê-lo por 10 reais. Talvez possam alguns argumentar que é só um vinil velho, mas isso seria insanidade demais e para argumentar isso teria de ser alguém que tem a dieta baseada exclusivamente no consumo de capim. É um disco muito especial e qualquer um deveria saber disso.
É exatamente isso o que os indianos pensam sobre a sacralidade das vacas e que nós pensamos sobre a sua função alimentar: todos deveriam saber.
Na impressão de uma futura saudade, Priscila e eu fomos ao parque Halfeld tentar comprar a famosa pipoca do Trenzinho da Música Clássica, que fica em frente ao antigo palácio da prefeitura. Trata-se de uma pipoca especial, não qualquer pipocazinha que se faz em casa, pois tem um sabor diferente e um milho especial, é mais leve também, e no fim é mais divertido comer pipocas em parques que em frente à TV. Esqueci-me, entretanto, que domingo é dia de folga do pipoqueiro e ficamos um pouco frustrados, nada de mais, mas enfim, havia uma expectativa. Para não perder a viagem fomos passear um pouco pela rua Halfeld até a praça da Estação e depois na Antônio Carlos e nesse trajeto é que estalou-me de novo a noção dos disparates de valor.
Como de praxe a rua Halfeld estava cheia de ambulantes, mas estranhamente numa quantidade menor do que de costume, havia mesmo um certo ar de tristeza entre eles e tentei não me aprofundar em entender aquilo, mas na sanha de captar aquele ambiente, acabei deparando-me com uma capa de disco de vinil em que estava escrito "A arte de Vinicius de Moraes", evidentemente fui até lá ver o disco. Trata-se de um disco duplo lançado em 1976 que tem canções até então inéditas e declamação de poemas e inclusive da tocante crônica "Pedro, meu filho", é o caso de um disco que foi produzido por Vinicius de Moraes, um dos últimos, por sinal, e diferentemente dos que vieram depois de sua morte, funestos tributos, esse conta com sua sensibilidade de seleção e interpretação integrais.
O vendedor era uma daquelas figuras que parecem saídas de trás das portas com um punhal na mão, os olhos esbugalhados e a boca serrada, taciturno e quase monossilábico, respondeu à primeira pergunta com as palavras: "dez reais". De emenda, adiantou-se para dizer que o disco estava em perfeito estado, sem arranhões ou avarias, sem nenhum problema que pudesse comprometer o seu uso. Evidentemente eu estava calado porque não esperava encontrar aquele disco e tanto mais por aquele preço, já que é um disco raro, tem 29 anos e estava em excepcional estado de concervação. Por alguma razão, (talvez por ter pouco dinheiro na carteira) ainda pelejei por um preço mais baixo sentindo-me o pai de todos os caras-de-pau desse mundo e por fim paguei ao vendedor. Ainda fomos a um bar beber qualquer coisa e depois voltamos quando tava anoitecendo.
Em casa eu olhava para meu "A arte de Vinicius de Moraes" e pensava no prazer que seria ouvir aquilo que estava secretamente oculto nos dois discos pretos imensos. "Há um toca-discos na casa da minha mãe" foi o primeiro pensamento, e depois considerei ainda mais sobre como era um privilégio ter aquele disco, em como alguém poderia ter se desfeito dele, e pior: como alguém poderia vendê-lo por 10 reais. Talvez possam alguns argumentar que é só um vinil velho, mas isso seria insanidade demais e para argumentar isso teria de ser alguém que tem a dieta baseada exclusivamente no consumo de capim. É um disco muito especial e qualquer um deveria saber disso.
É exatamente isso o que os indianos pensam sobre a sacralidade das vacas e que nós pensamos sobre a sua função alimentar: todos deveriam saber.
sexta-feira, fevereiro 18, 2005
Notas de cem reais
Constantemente sinto que o seu corpo carrega as marcas da longuíssima viagem feita até esse dia de alegria quando compreendi que os rasgos na pele foram pela ventura em tentar.
Como se tivesse cavalgado por uma semana inteira sem parar, seu corpo parece o de alguém que misturou-se ao que te trouxe até aqui e nas entrelinhas da sua gentileza em negar cuidados eu delicadamente abro os curativos apressados que você fez só para constar e sem a intenção de ver-se curado de alguma coisa.
Digo que preparo uma boa dose de whisky para essa noite. Sim, que tal um pouco de conhaque? Apetece imenso esse cheiro primitivo e quase ausente de gengibre. Quero ver seus olhos brilhando como antes e confirmar o que o meu coração me diz quanto ao fato de você manter no peito a esperança de amar o mundo inteiro e fazer meus sorrisos tão leves quanto os meus antigos de criancinha orgulhosa.
Preferia não gostar tanto da agressividade das guitarras para compensar a tristeza de tanta repressão no meu peito e no grito do vocalista, na rebeldia do punkrocker, sentir que a piada acabou e posso agora berrar essa contenção absurda. Mas você gosta de poesia sobre a natureza e fala que a suavidade tem sua força quando eu fico assim desconcertado com a sua nobreza ao repelir os ataques, na força dos seus argumentos nas discussões e como na arena das vaidades o seu discernimento corta brilhante.
Pois, meu bom amigo, são largos os horizontes dessa vida em que temos fixado os olhos em busca de algo que anuncie o nosso salvador, alguém por quem lutar, mas só vemos essa gente louca para brigar. Tenho na bainha uma espada enferrujada e minha farda surrada não pode mais ser lavada e os cadarços do meu cuturno puído não podem ser distinguidos do couro. Leio na parte de dentro do cinto a inscrição: "Deus está do nosso lado" e vejo você do meu lado, com sua fisionomia leve, mas não vamos lutar com eles, mas por alguém dentre eles que precise proteger seu puro coração.
Uma vida lutando para que ninguém tenha mais que lutar. Temos pretensões muito altas e do alto da nossa ambição mergulha, como um cachorro de circo para uma bacia de água, nossa cólera contra a materialização do mundo. Disseram-me que o amor não vive mais nos pensamentos e que os atestados atestam o sentimentos. Pois também soube que as notas de cem reais não são mais falsificadas porque todos suspeitam de antemão... o curioso fato desmaterialização que contradiz essa impressão, já que notas de cem reais existem mas ninguém sabe onde estão, vivem no imaginário! Talvez tenha sobrado pra nós sermos notas de cem reais. Tenho a impressão de que apesar de podermos pagar por uma diária num hotel 3 estrelas, ninguém nos aceitaria por lá, parece que não somos o que somos... mas nós somos e eu já não vou duvidar disso.
Eu sei bem que a nossa partida será, quando amanhecer o dia, outro até breve e que os espinhos do caminho cederão espaço para sonhos apaixonados e que encontraremos rápido o nosso lugar nesse mundo, afinal, notas de cem não foram feitas para circular.
Como se tivesse cavalgado por uma semana inteira sem parar, seu corpo parece o de alguém que misturou-se ao que te trouxe até aqui e nas entrelinhas da sua gentileza em negar cuidados eu delicadamente abro os curativos apressados que você fez só para constar e sem a intenção de ver-se curado de alguma coisa.
Digo que preparo uma boa dose de whisky para essa noite. Sim, que tal um pouco de conhaque? Apetece imenso esse cheiro primitivo e quase ausente de gengibre. Quero ver seus olhos brilhando como antes e confirmar o que o meu coração me diz quanto ao fato de você manter no peito a esperança de amar o mundo inteiro e fazer meus sorrisos tão leves quanto os meus antigos de criancinha orgulhosa.
Preferia não gostar tanto da agressividade das guitarras para compensar a tristeza de tanta repressão no meu peito e no grito do vocalista, na rebeldia do punkrocker, sentir que a piada acabou e posso agora berrar essa contenção absurda. Mas você gosta de poesia sobre a natureza e fala que a suavidade tem sua força quando eu fico assim desconcertado com a sua nobreza ao repelir os ataques, na força dos seus argumentos nas discussões e como na arena das vaidades o seu discernimento corta brilhante.
Pois, meu bom amigo, são largos os horizontes dessa vida em que temos fixado os olhos em busca de algo que anuncie o nosso salvador, alguém por quem lutar, mas só vemos essa gente louca para brigar. Tenho na bainha uma espada enferrujada e minha farda surrada não pode mais ser lavada e os cadarços do meu cuturno puído não podem ser distinguidos do couro. Leio na parte de dentro do cinto a inscrição: "Deus está do nosso lado" e vejo você do meu lado, com sua fisionomia leve, mas não vamos lutar com eles, mas por alguém dentre eles que precise proteger seu puro coração.
Uma vida lutando para que ninguém tenha mais que lutar. Temos pretensões muito altas e do alto da nossa ambição mergulha, como um cachorro de circo para uma bacia de água, nossa cólera contra a materialização do mundo. Disseram-me que o amor não vive mais nos pensamentos e que os atestados atestam o sentimentos. Pois também soube que as notas de cem reais não são mais falsificadas porque todos suspeitam de antemão... o curioso fato desmaterialização que contradiz essa impressão, já que notas de cem reais existem mas ninguém sabe onde estão, vivem no imaginário! Talvez tenha sobrado pra nós sermos notas de cem reais. Tenho a impressão de que apesar de podermos pagar por uma diária num hotel 3 estrelas, ninguém nos aceitaria por lá, parece que não somos o que somos... mas nós somos e eu já não vou duvidar disso.
Eu sei bem que a nossa partida será, quando amanhecer o dia, outro até breve e que os espinhos do caminho cederão espaço para sonhos apaixonados e que encontraremos rápido o nosso lugar nesse mundo, afinal, notas de cem não foram feitas para circular.
Pela autoria de Marcelo Camelo
Veja você onde é que o barco foi desaguar... A gente só queria um amor... Deus parece às vezes se esquecer! Mas não fala isso, por favor! Esse é só o começo do fim da nossa vida, deixa chegar o sonho, prepara uma avenida, que a gente vai passar!
***
Veja você quando é que tudo foi desabar... A gente corre pra se esconder e se amar, se amar até o fim! Sem saber que o fim já vai chegar! Deixa o moço bater que eu cansei da nossa fuga, já não vejo motivos para o amor de tantas rugas não ter o seu lugar...
***
Abra a janela agora, deixa que o sol te veja! É só lembrar que o amor é tão maior, que estamos sós no céu... Abra as cortinas pra mim que eu não me escondo de ninguém. O amor já desvendou nosso lugar e agora está de bem.
***
Deixa o moço bater que eu cansei da nossa fuga... Já não vejo motivos pra o amor de tantas rugas não ter o seu lugar...
***
Diz quem é maior que o amor! Me abraça forte agora, que é chegada a nossa hora! Vem, vamos além! Vão dizer que a vida é passageira, sem notar que a nossa estrela vai cair.
***
Veja você quando é que tudo foi desabar... A gente corre pra se esconder e se amar, se amar até o fim! Sem saber que o fim já vai chegar! Deixa o moço bater que eu cansei da nossa fuga, já não vejo motivos para o amor de tantas rugas não ter o seu lugar...
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Abra a janela agora, deixa que o sol te veja! É só lembrar que o amor é tão maior, que estamos sós no céu... Abra as cortinas pra mim que eu não me escondo de ninguém. O amor já desvendou nosso lugar e agora está de bem.
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Deixa o moço bater que eu cansei da nossa fuga... Já não vejo motivos pra o amor de tantas rugas não ter o seu lugar...
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Diz quem é maior que o amor! Me abraça forte agora, que é chegada a nossa hora! Vem, vamos além! Vão dizer que a vida é passageira, sem notar que a nossa estrela vai cair.
quinta-feira, fevereiro 17, 2005
A voz da maturidade
Ontem fui ao médico marcar exames de rotina, fato que por si só quebra a rotina de uma maneira que antes eu não consegui prever, não porque é inusitado o fato de ser examinado, mas precisamente porque tinha me esquecido completamente da personalidade jovial e madura do meu médico de muitos anos, o dr. Alfredo Lousada.
Na verdade é preciso esclarecer um fato incômodo em alguma medida: não gosto de médicos. Acho-os muito mecânicos às vezes e quando estão numa festa parecem nunca conseguir se divertir, sempre olham para os sapatos das pessoas e fazem uma cara horrível se alguém pergunta algo sobre a saúde, mesmo uma pergunta inocente. Enfim, impressões de alguém que nunca gostou de ir a médicos e ficar esperando na antessala junto de um exemplar da revista Caras de 2002. À parte desse sarcasmo preconceituoso contra a nobre profissão de médico, não simpatizo mesmo com a classe e tenho dito.
Há algumas figurinhas, entretanto, que tem a grande facilidade de ludibriar esses pensamentos formados por anos e destacar-se com simpatia e mesmo alguns médicos atingem a façanha, como é o caso do dr. Alfredo.
Já havia muito tempo que não ia ao seu consultório, por alto uns 3 anos, e tinha me esquecido que havíamos conversado muito sobre a profissão de médico e de advogado e talvez por ter ficado à vontade demais acabei apresentando a tese jurídica de que os médicos são 'mecânicos de luxo', segundo a boa defesa deles, "com a diferença que mexem no 'motor' com ele ligado", com exceção dos legistas! O dr. Alfredo ria-se imensamente dessas bobagens e me lembrava que os cientistas estavam substituindo com pressa os ratos de laboratório pelos advogados e com boas razões: a primeira é que eles se afeiçoam menos aos advogados e a segunda é que os advogados aceitam fazer coisas que nem os ratos de laboratório aceitariam fazer. Enfim, um encontro cordial.
Nesta visita de ontem ao dr. Alfredo ainda notei o mesmo bom humor e espírito libertário e tranqüilo, talvez perturbado unicamente pelas artrites que a idade lhe trouxe, mas ainda cumprimentava os amigos erguendo os dois polegares perto da altura da cintura, sua característica marcante.
Agora já formado, sentei no sofá branco do consultório de otorrinolaringologia de outro modo, na curiosa ascenção social que os títulos acadêmicos promovem, principalmente quando seguidos de reputação ou êxito, embora eu não ache que o meu seja seguido disso ainda, afinal sou um recém-formado. Deste modo a conversa fluiu mais séria e embora eu achasse que fosse só uma introdução para falarmos por fim dos exames, acabamos por falar de muitos assuntos, como velhos amigos na afindade que sempre tivemos.
Eu olhando o semblante do médico via o estudante de uma vida inteira, aborrecido até com os diagnósticos enfadonhamente repetidos e cansado das mães acompanhando seus filhos e também se consultando para aproveitar o ensejo. A testa marcada e o jaleco mais cumprido do que os usados pelos mais novos. Sua testa frisada deixou claro de onde vinham as marcas ao falar do filho, afinal eu o conheço do colégio, e comentou da sua tristeza pela morte de uma amiga num acidente de carro, e estranhamente comovido pela tristeza do filho, adentrou na minha prosposta de discussão sobre a fragilidade da vida e deu suas conclusões sempre com muita gentileza e praticidade.
Eu relembrei, mas sem mencionar, da morte do irmão de uma amiga de infância há poucas semanas em circunstâncias parecidas: um acidente de motocicleta aos 28 anos e a três semanas de casar-se com seu amor da vida inteira.
Dr. Alfredo mencionou o enterro e de como a jovem face do filho pareceu, pela primeira vez, a de um homem, no vinco que a tristeza marca no rosto sem consentimento. Que chorou sem fazer barulho e não reclamou de usar terno.
Olhando pra baixo falou do que pensava como quem fala de algo consumado e quis ainda disfarçar a sua tristeza e de uma maneira muito madura e muito elegante, falou devagar e construtivamente da sua juventude e do que pensava que iria acontecer e passava a impressão segura de estar feliz com o rumo das coisas, de ter se afeiçoado à sua rotina de uma maneira bastante produtiva e de que, como eu já penso há um tempo, certas coisas simplesmente tem de ser feitas.
Com a expressão e o espírito mais descansados, mais leves e tranqüilos, deixei seu consultório com uma excelente disposição, não propriamente do corpo, mas essencialmente do espírito na satisfação de dividir com outro membro produtivo da sociedade alguma angústia da vida, velada normalmente nos sorrisos formais.
Na verdade é preciso esclarecer um fato incômodo em alguma medida: não gosto de médicos. Acho-os muito mecânicos às vezes e quando estão numa festa parecem nunca conseguir se divertir, sempre olham para os sapatos das pessoas e fazem uma cara horrível se alguém pergunta algo sobre a saúde, mesmo uma pergunta inocente. Enfim, impressões de alguém que nunca gostou de ir a médicos e ficar esperando na antessala junto de um exemplar da revista Caras de 2002. À parte desse sarcasmo preconceituoso contra a nobre profissão de médico, não simpatizo mesmo com a classe e tenho dito.
Há algumas figurinhas, entretanto, que tem a grande facilidade de ludibriar esses pensamentos formados por anos e destacar-se com simpatia e mesmo alguns médicos atingem a façanha, como é o caso do dr. Alfredo.
Já havia muito tempo que não ia ao seu consultório, por alto uns 3 anos, e tinha me esquecido que havíamos conversado muito sobre a profissão de médico e de advogado e talvez por ter ficado à vontade demais acabei apresentando a tese jurídica de que os médicos são 'mecânicos de luxo', segundo a boa defesa deles, "com a diferença que mexem no 'motor' com ele ligado", com exceção dos legistas! O dr. Alfredo ria-se imensamente dessas bobagens e me lembrava que os cientistas estavam substituindo com pressa os ratos de laboratório pelos advogados e com boas razões: a primeira é que eles se afeiçoam menos aos advogados e a segunda é que os advogados aceitam fazer coisas que nem os ratos de laboratório aceitariam fazer. Enfim, um encontro cordial.
Nesta visita de ontem ao dr. Alfredo ainda notei o mesmo bom humor e espírito libertário e tranqüilo, talvez perturbado unicamente pelas artrites que a idade lhe trouxe, mas ainda cumprimentava os amigos erguendo os dois polegares perto da altura da cintura, sua característica marcante.
Agora já formado, sentei no sofá branco do consultório de otorrinolaringologia de outro modo, na curiosa ascenção social que os títulos acadêmicos promovem, principalmente quando seguidos de reputação ou êxito, embora eu não ache que o meu seja seguido disso ainda, afinal sou um recém-formado. Deste modo a conversa fluiu mais séria e embora eu achasse que fosse só uma introdução para falarmos por fim dos exames, acabamos por falar de muitos assuntos, como velhos amigos na afindade que sempre tivemos.
Eu olhando o semblante do médico via o estudante de uma vida inteira, aborrecido até com os diagnósticos enfadonhamente repetidos e cansado das mães acompanhando seus filhos e também se consultando para aproveitar o ensejo. A testa marcada e o jaleco mais cumprido do que os usados pelos mais novos. Sua testa frisada deixou claro de onde vinham as marcas ao falar do filho, afinal eu o conheço do colégio, e comentou da sua tristeza pela morte de uma amiga num acidente de carro, e estranhamente comovido pela tristeza do filho, adentrou na minha prosposta de discussão sobre a fragilidade da vida e deu suas conclusões sempre com muita gentileza e praticidade.
Eu relembrei, mas sem mencionar, da morte do irmão de uma amiga de infância há poucas semanas em circunstâncias parecidas: um acidente de motocicleta aos 28 anos e a três semanas de casar-se com seu amor da vida inteira.
Dr. Alfredo mencionou o enterro e de como a jovem face do filho pareceu, pela primeira vez, a de um homem, no vinco que a tristeza marca no rosto sem consentimento. Que chorou sem fazer barulho e não reclamou de usar terno.
Olhando pra baixo falou do que pensava como quem fala de algo consumado e quis ainda disfarçar a sua tristeza e de uma maneira muito madura e muito elegante, falou devagar e construtivamente da sua juventude e do que pensava que iria acontecer e passava a impressão segura de estar feliz com o rumo das coisas, de ter se afeiçoado à sua rotina de uma maneira bastante produtiva e de que, como eu já penso há um tempo, certas coisas simplesmente tem de ser feitas.
Com a expressão e o espírito mais descansados, mais leves e tranqüilos, deixei seu consultório com uma excelente disposição, não propriamente do corpo, mas essencialmente do espírito na satisfação de dividir com outro membro produtivo da sociedade alguma angústia da vida, velada normalmente nos sorrisos formais.
quarta-feira, fevereiro 16, 2005
Morte do amor do mundo
Deixei de considerar que a face do acaso tem sua magia. Não, agora não tem mais para mim. Pretendo ver no acaso apenas uma circunstância não prevista, que é o que ele é mesmo, e não mais a prenunciação divina de algo ou de alguém que representa especificamente a tragédia ou a glória.
Mergulhado em pensamentos sempre colocados em fila, antevi mais de uma vez que a magia do mundo é nosso fraco desejo de que as coisas sejam menos mecânicas, menos previsíveis, menos tolas e aborrecedoras. Um remédio pretensioso até considerando o que ele pretende curar.
Sem mais essa parca ilusão que a tradição milenar incrustou no nosso espírito, ainda procuro rir das coisas tolas pela sua inocência em ser e assim elas parecem mesmo engraçadas. Não diria ridículas, porque para isso precisariam ser de um outro tipo, precisariam ser maliciosas e tolas, uma combinação tão deprimente quanto impotente à sua pretensão de malícia.
Ainda sinto-me bem perto da natureza, sim da natureza calada, lenta, discreta e tão poderosa. Procuro ver dentro de mim os sentimentos ancestrais de estar nessa condição de bicho, de ter o ar fresco para respirar, de sentir o cheiro do mato, ver os bichos, ouvir o vento e o silêncio maior que mora em tudo. A natureza não está nunca alvoroçada para chamar atenção de todos e por isso mesmo não fica gritando e perturbando os outros, apenas vive e isso já é quase tudo.
Animal político que sou, entretanto, tenho na solidão minha grande inimiga e como as pedras não gostam muito de discutir filosofia, tou sempre entre homens e só vez ou outra lembro-me que também sou bicho.
Esses meus amigos de tantos anos que eu sinto agora tão distantes, seja pela distância iminente, seja pelo calado nos nossos olhos dessa grande tristeza que é amar e perder. Pois partilho apenas com meus amigos essa minha triste sina de viver constantemente apaixonado e ser o meu amor um grande cadáver que dá seus espasmos de vida, mas não vive.
Talvez a roda da vida tenha-me apresentado os sorrisos errados na hora errada e eu esteja subvertendo tudo para uma visão mais sombria de como tudo isso funciona, mas cá dentro eu sei que conheci os sorrisos certos na hora exata e o hálito de cada um funcionou como um grande catalizador de todas as conclusões que tenho sobre a condição humana e o amor do mundo e senti de dentro do sua constituição gastrorretal a verdade que os esforços para fazer desse mundo um lugar sem lutas ou desespero é apenas um sonho tão inocente quanto a própria esperança de amar até o fim.
O pobre do amor perde sempre, como a menina pobre que é recrutada para a vida de meretriz, o ideal de amor perde-se ante o desamparo e a avareza, ante a luxúria e os desejos de grandeza, ante o orgulho e a dissimulação. Daí sobra dele esse mesmo cadáver que dá espasmos e que eu tantas vezes, tão debilmente, tentei amar e trazer à vida em vão, sem compreender que não tinha o poder de fazer vivo algo que de forma alguma compreenderia o que é viver, num dilema sempre sociológico pautado em joguinhos estúpidos e cansativos.
Como uma árvore crescendo dentro de outra, sinto dentro de mim um cadáver espasmático crescendo onde antes era eu. Ele rapidamente toca todos os tecidos do meu corpo e eu percebo muito bem os seus risos e nas entrelinhas de suas piadas de duplo sentido tento acompanhá-lo nas gargalhadas que há algum tempo me teriam feito vômito. Ele fala das grandes e longas tardes de verão em que sobre o meu colo repousará a cabeça cheia de cabelos espalhados das mulheres que me amarão em vão e de como eu rirei dentro de mim da palidez do rosto delas quando não compreenderem meus gestos e duvidarem de onde eu vim. Ele massageia minhas costas e sussurando na orelha diz que parecer ao invés de ser gasta menos energia e dá melhores resultados. Entre o discurso de ambições e destempero e meu desassossego em não mais compreender o mundo, o corpo do cadáver parece cada vez mais ser o meu corpo e aprendo rapidamente a sua língua, descobrindo a sonoridade inebriante das mentiras e o riso velado ante as possíveis dissimulações, e num espasmo ainda meu, compreendendo que a morte do amor sobrevive à custa dessa legião de zumbis que a mágoa recruta.
Enquanto experimento esse terno bem passado, vestindo como um militar vistiria sua farda antes da batalha, trato de tomar a brisa que vem da janela como um suspiro vindo do além para dentro de mim e tendo cá no meu corpo a mesma natureza sua, trato agora de enervar meus brônquios e passar ao meu sangue como as moléculas de oxigênio mais metódicas que jamais pulsaram num coração humano.
Mergulhado em pensamentos sempre colocados em fila, antevi mais de uma vez que a magia do mundo é nosso fraco desejo de que as coisas sejam menos mecânicas, menos previsíveis, menos tolas e aborrecedoras. Um remédio pretensioso até considerando o que ele pretende curar.
Sem mais essa parca ilusão que a tradição milenar incrustou no nosso espírito, ainda procuro rir das coisas tolas pela sua inocência em ser e assim elas parecem mesmo engraçadas. Não diria ridículas, porque para isso precisariam ser de um outro tipo, precisariam ser maliciosas e tolas, uma combinação tão deprimente quanto impotente à sua pretensão de malícia.
Ainda sinto-me bem perto da natureza, sim da natureza calada, lenta, discreta e tão poderosa. Procuro ver dentro de mim os sentimentos ancestrais de estar nessa condição de bicho, de ter o ar fresco para respirar, de sentir o cheiro do mato, ver os bichos, ouvir o vento e o silêncio maior que mora em tudo. A natureza não está nunca alvoroçada para chamar atenção de todos e por isso mesmo não fica gritando e perturbando os outros, apenas vive e isso já é quase tudo.
Animal político que sou, entretanto, tenho na solidão minha grande inimiga e como as pedras não gostam muito de discutir filosofia, tou sempre entre homens e só vez ou outra lembro-me que também sou bicho.
Esses meus amigos de tantos anos que eu sinto agora tão distantes, seja pela distância iminente, seja pelo calado nos nossos olhos dessa grande tristeza que é amar e perder. Pois partilho apenas com meus amigos essa minha triste sina de viver constantemente apaixonado e ser o meu amor um grande cadáver que dá seus espasmos de vida, mas não vive.
Talvez a roda da vida tenha-me apresentado os sorrisos errados na hora errada e eu esteja subvertendo tudo para uma visão mais sombria de como tudo isso funciona, mas cá dentro eu sei que conheci os sorrisos certos na hora exata e o hálito de cada um funcionou como um grande catalizador de todas as conclusões que tenho sobre a condição humana e o amor do mundo e senti de dentro do sua constituição gastrorretal a verdade que os esforços para fazer desse mundo um lugar sem lutas ou desespero é apenas um sonho tão inocente quanto a própria esperança de amar até o fim.
O pobre do amor perde sempre, como a menina pobre que é recrutada para a vida de meretriz, o ideal de amor perde-se ante o desamparo e a avareza, ante a luxúria e os desejos de grandeza, ante o orgulho e a dissimulação. Daí sobra dele esse mesmo cadáver que dá espasmos e que eu tantas vezes, tão debilmente, tentei amar e trazer à vida em vão, sem compreender que não tinha o poder de fazer vivo algo que de forma alguma compreenderia o que é viver, num dilema sempre sociológico pautado em joguinhos estúpidos e cansativos.
Como uma árvore crescendo dentro de outra, sinto dentro de mim um cadáver espasmático crescendo onde antes era eu. Ele rapidamente toca todos os tecidos do meu corpo e eu percebo muito bem os seus risos e nas entrelinhas de suas piadas de duplo sentido tento acompanhá-lo nas gargalhadas que há algum tempo me teriam feito vômito. Ele fala das grandes e longas tardes de verão em que sobre o meu colo repousará a cabeça cheia de cabelos espalhados das mulheres que me amarão em vão e de como eu rirei dentro de mim da palidez do rosto delas quando não compreenderem meus gestos e duvidarem de onde eu vim. Ele massageia minhas costas e sussurando na orelha diz que parecer ao invés de ser gasta menos energia e dá melhores resultados. Entre o discurso de ambições e destempero e meu desassossego em não mais compreender o mundo, o corpo do cadáver parece cada vez mais ser o meu corpo e aprendo rapidamente a sua língua, descobrindo a sonoridade inebriante das mentiras e o riso velado ante as possíveis dissimulações, e num espasmo ainda meu, compreendendo que a morte do amor sobrevive à custa dessa legião de zumbis que a mágoa recruta.
Enquanto experimento esse terno bem passado, vestindo como um militar vistiria sua farda antes da batalha, trato de tomar a brisa que vem da janela como um suspiro vindo do além para dentro de mim e tendo cá no meu corpo a mesma natureza sua, trato agora de enervar meus brônquios e passar ao meu sangue como as moléculas de oxigênio mais metódicas que jamais pulsaram num coração humano.
terça-feira, fevereiro 15, 2005
Era uma vez na América
Ato adiado por muitas vezes, ontem finalmente pude assistir ao mais recente trabalho do diretor Michael Moore, o documentário "Farenheit 11 de setembro".
Já tinha assistido a outros trabalhos de Moore, como "Roger e eu" que na minha opinião é seu melhor filme até hoje, e conheço sua perspicácia, obstinação e sarcasmo. Michael Moore é um homem idealista e inteligente, que transplanta para sua câmera exatamente o que vai em sua cabeça e suas idéias não podem ser consideradas tão radicais como apregoam seus opositores, consideraria de outra maneira: sua ironia irrita as vítimas que em geral são poderosas.
Em "Farenheit..." encontramos os mesmos ingredientes de antes e como sempre ótimos resultados. A administração de George Bush em cheque e sua atitude frente aos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 são objeto de um documentário que procura demonstrar desde a falácia deprimente das eleições presidenciais americanas de 2000 até os rumores anteriores às eleições de 2004, em tendências claras de impedir a eleição (já que da primeira vez não foi eleito) de George Bush.
No entremeio Moore procura demonstrar a inépcia do governo americano em prevenir os ataques, a fraqueza do congresso para investigar os atentados assim como analisar o bizarríssimo Decreto Patriótico que suprimiu por um período de tempo direitos civis dos cidadãos americanos. Nesse trecho um congressita é entrevistado e depois de chamar Moore de "meu filho" afirma que ele e seus colegas nunca lêem as propostas de lei. As guerras no Afeganistão e Iraque ganham relevo, principalmente quando Moore questiona as ligações da família Bush com as famílias real da Arábia Saudita e com a família Bin Laden, no mínimo dignas de desconfiança, face às provas demonstradas com habilidade por Moore. As ligações das corporações americanas ligadas ao governo Bush com os gastos governamentais no Iraque são largamente exploradas como mais um argumento para demonstrar a falta de moralidade em comercializar à custa de vidas de civis inocentes. Inclusive outra cena chocante é uma reunião de grandes empresas americanas reunidas para discutir como poderiam tirar o máximo de proveito possível do conflito. O fim do documentário tem um clima lacônico sobre a então possível eleição de Bush como presidente em 2004 e se o propósito de Moore foi deixar todos se sentindo idiotas por aquilo estar acontecendo ele conseguiu com louvor.
Inevitável ficar com a impressão de que os Estados Unidos não são mais os Estados Unidos, bem deixe-me ser mais claro. A América que eu sempre conheci era um país determinado e unido na fé cristã e no amor pela excelência e produtividade. Estudar a história americana foi como estudar a aplicação mais genuína de todos os mais profundos valores da civilização ocidental e analisar suas vitórias foi como analisar a única conseqüência possível para uma empresa plena de força, inteligência e virtude.
A América de George Bush é uma América transfigurada, mutilada de seus valores mais fundos. O golpe antidemocrático dado por Bush foi só o início de uma catástrofe em série que vem atingindo o espírito americano manchando-o de vergonha. O ataque ao Iraque sem a aval da Organização das Nações Unidas foi uma atitude de prepotência e arrogância que colide frontalmente com os ideais americanos de liberdade e obediência às leis como sustentáculos de uma nação ordeira e soberana.
Os cacos que sobraram da América, e sobre os quais tripudiam o presidente Bush e sua equipe de gananciosos alienados, perguntam-se atônitos: "o que vem agora?" Enquanto isso, a grande massa de ignorantes funcionais que o sistema americano de ensino produz continua a balançar sistematicamente a cabeça em prol do que chama de "interesse nacional", mas que não passa de interesses particulares.
Os fundadores dos Estados Unidos, homens que realmente pegaram em armas para defender o que acreditavam e não ficaram atônitos sem saber o que fazer num momento de agressão externa, como o senhor George Bush quando dos ataques terroristas, esses vomitariam de nojo se pudessem em que se tornou o país que um dia sonharam e para o qual dedicaram suas vidas, diga-se de passagem, plenamente honradas e dignas de ter a memória reverenciada.
Já tinha assistido a outros trabalhos de Moore, como "Roger e eu" que na minha opinião é seu melhor filme até hoje, e conheço sua perspicácia, obstinação e sarcasmo. Michael Moore é um homem idealista e inteligente, que transplanta para sua câmera exatamente o que vai em sua cabeça e suas idéias não podem ser consideradas tão radicais como apregoam seus opositores, consideraria de outra maneira: sua ironia irrita as vítimas que em geral são poderosas.
Em "Farenheit..." encontramos os mesmos ingredientes de antes e como sempre ótimos resultados. A administração de George Bush em cheque e sua atitude frente aos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 são objeto de um documentário que procura demonstrar desde a falácia deprimente das eleições presidenciais americanas de 2000 até os rumores anteriores às eleições de 2004, em tendências claras de impedir a eleição (já que da primeira vez não foi eleito) de George Bush.
No entremeio Moore procura demonstrar a inépcia do governo americano em prevenir os ataques, a fraqueza do congresso para investigar os atentados assim como analisar o bizarríssimo Decreto Patriótico que suprimiu por um período de tempo direitos civis dos cidadãos americanos. Nesse trecho um congressita é entrevistado e depois de chamar Moore de "meu filho" afirma que ele e seus colegas nunca lêem as propostas de lei. As guerras no Afeganistão e Iraque ganham relevo, principalmente quando Moore questiona as ligações da família Bush com as famílias real da Arábia Saudita e com a família Bin Laden, no mínimo dignas de desconfiança, face às provas demonstradas com habilidade por Moore. As ligações das corporações americanas ligadas ao governo Bush com os gastos governamentais no Iraque são largamente exploradas como mais um argumento para demonstrar a falta de moralidade em comercializar à custa de vidas de civis inocentes. Inclusive outra cena chocante é uma reunião de grandes empresas americanas reunidas para discutir como poderiam tirar o máximo de proveito possível do conflito. O fim do documentário tem um clima lacônico sobre a então possível eleição de Bush como presidente em 2004 e se o propósito de Moore foi deixar todos se sentindo idiotas por aquilo estar acontecendo ele conseguiu com louvor.
Inevitável ficar com a impressão de que os Estados Unidos não são mais os Estados Unidos, bem deixe-me ser mais claro. A América que eu sempre conheci era um país determinado e unido na fé cristã e no amor pela excelência e produtividade. Estudar a história americana foi como estudar a aplicação mais genuína de todos os mais profundos valores da civilização ocidental e analisar suas vitórias foi como analisar a única conseqüência possível para uma empresa plena de força, inteligência e virtude.
A América de George Bush é uma América transfigurada, mutilada de seus valores mais fundos. O golpe antidemocrático dado por Bush foi só o início de uma catástrofe em série que vem atingindo o espírito americano manchando-o de vergonha. O ataque ao Iraque sem a aval da Organização das Nações Unidas foi uma atitude de prepotência e arrogância que colide frontalmente com os ideais americanos de liberdade e obediência às leis como sustentáculos de uma nação ordeira e soberana.
Os cacos que sobraram da América, e sobre os quais tripudiam o presidente Bush e sua equipe de gananciosos alienados, perguntam-se atônitos: "o que vem agora?" Enquanto isso, a grande massa de ignorantes funcionais que o sistema americano de ensino produz continua a balançar sistematicamente a cabeça em prol do que chama de "interesse nacional", mas que não passa de interesses particulares.
Os fundadores dos Estados Unidos, homens que realmente pegaram em armas para defender o que acreditavam e não ficaram atônitos sem saber o que fazer num momento de agressão externa, como o senhor George Bush quando dos ataques terroristas, esses vomitariam de nojo se pudessem em que se tornou o país que um dia sonharam e para o qual dedicaram suas vidas, diga-se de passagem, plenamente honradas e dignas de ter a memória reverenciada.
segunda-feira, fevereiro 14, 2005
Viva os domesticadores
Na enfática demostração de que a convivência social é um valor maior e que os cães, assim como os gatos e outros bichos em menor medida e de outras formas, fazem parte dela, as escolas de adestramento ganham a sua importância para fazer com que não só os bichinhos sejam afáveis à conviência humana, quanto obedeçam a comandos que funcionam como campainhas de ordens em suas pequeninas mentes.
Cães e humanos começaram a conviver para benefício mútuo: os cães perceberam que junto dos humanos o alimento era abundante e os humanos adoravam não só a vitalidade e eficiência dos cães para a caça, vigília e o pastoreio quanto notaram sua lealdade como algo digno de admiração. Hoje os cães não desempenham a mesma função, mas ainda de beneficiam dessa admiração humana quanto ao seu caráter e a comida perto dos humanos continua abundante, mesmo que na forma de uma ração seca que só quimicamente incrementada pode lembrar o gosto de carne. Não que os cães não tenham mais essa função, muitos ainda trabalham como vigias, outros como policiais e farejadores de drogas. É notável, entretanto, que a grande maioria dos cães domesticados vive como um animal doméstico, alguns com prejuízo de seu histórico de utilidade para o trabalho. É o caso do Bouvier des Flandres, uma magnífica raça de procedência francesa que por centenas e centenas de anos trabalhou como cão pastor e com uma peculiaridade muito interessante: ao invés de morder a pata da ovelha ou vaca, como normalmente fazem os cães pastores, o Bouvier (boiadeiro) de Flandres, salta sobre o animal atingindo-o com as patas dianteiras, sem dúvida um espetáculo magnífico de interação entre homem e animal para o trabalho nessas nuanças estratégicas em que cada qual usa um talento: o bicho com sua força, destreza, e técnica para pastorear e o homem sua perspicácia ao convencer o bicho de que ele precisa da convivência humana e esse convencimento é tão antigo que está impresso na memória ancestral dos cães, já que as raças domesticadas hoje são naturalmente condicionadas ao contato com homens.
Os homens, acredito que da mesma forma, estão já condicionados a domesticar e criar cães, senão como explicar que bebês ainda bem pequenos não tem receio de tocar e brincar com cães, animais que estão um tanto longe de parecer com seus pais? Ou então nosso natural contentamento quando vemos filhotes de cachorros e como o mesmo não acontece quando vemos filhotes de abutres? A possível resposta é que esses animais fazem parte da nossa convivência social imemorialmente e sua presença é uma necessidade que se não é mais justificada pelo auxílio no nosso trabalho, ao menos não é mais na grande maioria das vezes, é necessária para a nossa perfeita e sempre atualizada compreensão de como o convivío social. Sim, não falo mais de homens domesticando cães, mas do contrário: cães ensinando convivência social à pessoas. De que outra forma compreender que os cães são os únicos amigos de tantas pessoas? De que os solitários tem neles mesmo os melhores amigos? Resta concluir que de uma forma ou de outra não souberam, ou não puderam, ou não quiseram relacionar-se com outras pessoas, seja porque não gostam de pessoas, seja porque gostam de cães, seja por uma coisa combinada com a outra.
Vivemos com a pretensão de que domesticamos os cães, mas ocorre o contrário: os cães com a sua lealdade e o seu carinho que nos causam tanta estima, lembram-nos da nossa natureza e da nossa condição mais primitiva, livrando-nos, durante os momentos de convivência canina, da era do egoísmo e do imediatismo onde tudo é tão selvagem e incivilizado.
Há mesmo juristas que defendem a consideração dos animais como detentores de personalidade jurídica, fato esse que possibilitaria que tivessem patrimônio e figurassem em demandas judiciais e mesmo tivessem direito à vida e demais direitos da personalidade e levando em conta a importância que os bichinhos domésticos têm no seio das famílias, sobretudo os cães, a tese pode até vingar algum dia.
Na verdade espero que os cães continuem com esse seu maravilhoso trabalho de nos domesticar, eles realmente tem feito um esforço por nós nesse sentido, e só cobram ração seca, de fato algum reconhecimento é merecido. Conclamo, portanto, todos a dar um grande viva aos cães: "viva os domesticadores!"
Cães e humanos começaram a conviver para benefício mútuo: os cães perceberam que junto dos humanos o alimento era abundante e os humanos adoravam não só a vitalidade e eficiência dos cães para a caça, vigília e o pastoreio quanto notaram sua lealdade como algo digno de admiração. Hoje os cães não desempenham a mesma função, mas ainda de beneficiam dessa admiração humana quanto ao seu caráter e a comida perto dos humanos continua abundante, mesmo que na forma de uma ração seca que só quimicamente incrementada pode lembrar o gosto de carne. Não que os cães não tenham mais essa função, muitos ainda trabalham como vigias, outros como policiais e farejadores de drogas. É notável, entretanto, que a grande maioria dos cães domesticados vive como um animal doméstico, alguns com prejuízo de seu histórico de utilidade para o trabalho. É o caso do Bouvier des Flandres, uma magnífica raça de procedência francesa que por centenas e centenas de anos trabalhou como cão pastor e com uma peculiaridade muito interessante: ao invés de morder a pata da ovelha ou vaca, como normalmente fazem os cães pastores, o Bouvier (boiadeiro) de Flandres, salta sobre o animal atingindo-o com as patas dianteiras, sem dúvida um espetáculo magnífico de interação entre homem e animal para o trabalho nessas nuanças estratégicas em que cada qual usa um talento: o bicho com sua força, destreza, e técnica para pastorear e o homem sua perspicácia ao convencer o bicho de que ele precisa da convivência humana e esse convencimento é tão antigo que está impresso na memória ancestral dos cães, já que as raças domesticadas hoje são naturalmente condicionadas ao contato com homens.
Os homens, acredito que da mesma forma, estão já condicionados a domesticar e criar cães, senão como explicar que bebês ainda bem pequenos não tem receio de tocar e brincar com cães, animais que estão um tanto longe de parecer com seus pais? Ou então nosso natural contentamento quando vemos filhotes de cachorros e como o mesmo não acontece quando vemos filhotes de abutres? A possível resposta é que esses animais fazem parte da nossa convivência social imemorialmente e sua presença é uma necessidade que se não é mais justificada pelo auxílio no nosso trabalho, ao menos não é mais na grande maioria das vezes, é necessária para a nossa perfeita e sempre atualizada compreensão de como o convivío social. Sim, não falo mais de homens domesticando cães, mas do contrário: cães ensinando convivência social à pessoas. De que outra forma compreender que os cães são os únicos amigos de tantas pessoas? De que os solitários tem neles mesmo os melhores amigos? Resta concluir que de uma forma ou de outra não souberam, ou não puderam, ou não quiseram relacionar-se com outras pessoas, seja porque não gostam de pessoas, seja porque gostam de cães, seja por uma coisa combinada com a outra.
Vivemos com a pretensão de que domesticamos os cães, mas ocorre o contrário: os cães com a sua lealdade e o seu carinho que nos causam tanta estima, lembram-nos da nossa natureza e da nossa condição mais primitiva, livrando-nos, durante os momentos de convivência canina, da era do egoísmo e do imediatismo onde tudo é tão selvagem e incivilizado.
Há mesmo juristas que defendem a consideração dos animais como detentores de personalidade jurídica, fato esse que possibilitaria que tivessem patrimônio e figurassem em demandas judiciais e mesmo tivessem direito à vida e demais direitos da personalidade e levando em conta a importância que os bichinhos domésticos têm no seio das famílias, sobretudo os cães, a tese pode até vingar algum dia.
Na verdade espero que os cães continuem com esse seu maravilhoso trabalho de nos domesticar, eles realmente tem feito um esforço por nós nesse sentido, e só cobram ração seca, de fato algum reconhecimento é merecido. Conclamo, portanto, todos a dar um grande viva aos cães: "viva os domesticadores!"
sexta-feira, fevereiro 11, 2005
Música Italiana
Quando eu estava saindo da casa de minha amiga Anna no sábado tocava na casa de algum vizinho uma triste canção em italiano. Num grave que na hora pareceu-me interminável entrevi uma dose boa de tristeza para poder-se cantar daquela maneira.
Aos meus pensamentos mesclou-se também uma trilha sonora só de música italiana e fiquei desde aquele dia pensando nos meus cantores preferidos: Rita Pavone, Bobby Solo, Claudio Baglioni... que músicas mais melodiosas!
Em casa fiquei ouvindo 'non é facile avere 18 ani' na voz da Rita Pavone, tão aguda e tão suave, que combinação maravilhosa, e tão forte também que ficava até divertido quando ela levantava a voz e mesmo quase gritava, lindo.
A alma por trás da voz, algo que hoje não se faz da mesma maneira na música popular. Os italianos não em nenhuma vergonha em levantar bem alto o timbre da voz e por que tanto receio afinal? Talvez seja falta de confiança ou abdução cultural, já que os americanos não fazem isso, é algo mais latino mesmo. É nessas horas que tem de se considerar que nada no mundo dá mais prazer que beber nas águas da nossa tradição e dos nossos costumes: nenhuma água é mais fresca, nem mata a sede com mais eficiência.
Os italianos carregam essas tradições sem nenhuma obrigação, é por natureza e muito decidida, diga-se para reafirmar. Talvez seja o idioma deles. Já fiquei reparando nas vogais mais alongadas, no tom musical. Qualquer um que assistir ao 'cine paradiso' vai perceber como o personagem Alfredo tem um tom musical na voz, eu acho que o ator não bolou aquilo para a atuação (sem desmerecer seu excelente trabalho nesse filme), é de fato o jeito de falar.
Ocorreu-me agora aliar as duas artes em que os italianos se destacam: o cinema e a música, ou seja, as trilhas sonoras dos filmes italianos. São sempre sutis, ao contrário do que alguém mais apressado poderia pensar por serem italianos. Daí entrevê-se sua natureza: uma grande sensibilidade para fazer algo realmente belo, não precisa ser sempre efusivamente emotivo e exagerado, basta que seja tocante, puro, verdadeiro, profundo. Acho que a música italiana é exatamente assim. Tranqüilamente escuto as canções sobre incêndios, montanhas e pássaros e imagino que não haveria outro jeito de se fazer música popular. Afinal, a cultura popular através da música tem esse brilho notável, que na música popular da Itália fica muito claro.
Ao instalar-se nos meus pensamentos naquele sábado minha vida tornou-se uma música italiana por esses dias e tenho na imaginação dançado comigo mesmo como um bobo pela rua, ou mesmo pelo meu quarto, imaginando essa canção sem parar dentro de mim, claramente contaminado por aquela paixão e jogado dentro das minhas. Na canção há um coro bem discreto para fazer maior o ápice do timbre do cantor e violinos também ao fundo para que tudo fique bem dramático, mas nunca chega a ser tolo, vai-se ao extremo de carinho, tragédia, ternura, fatalismo, tudo com muita paixão.
Fico aqui então, queridos amigos, admirando a sonoridade ímpar do idioma italiano, formalmente cantado, nessas melodias cheias de idéias singelas e simples. Quem sabe agora uma outra canção menos exageradamente exaustiva, mas igualmente italiana?
Aos meus pensamentos mesclou-se também uma trilha sonora só de música italiana e fiquei desde aquele dia pensando nos meus cantores preferidos: Rita Pavone, Bobby Solo, Claudio Baglioni... que músicas mais melodiosas!
Em casa fiquei ouvindo 'non é facile avere 18 ani' na voz da Rita Pavone, tão aguda e tão suave, que combinação maravilhosa, e tão forte também que ficava até divertido quando ela levantava a voz e mesmo quase gritava, lindo.
A alma por trás da voz, algo que hoje não se faz da mesma maneira na música popular. Os italianos não em nenhuma vergonha em levantar bem alto o timbre da voz e por que tanto receio afinal? Talvez seja falta de confiança ou abdução cultural, já que os americanos não fazem isso, é algo mais latino mesmo. É nessas horas que tem de se considerar que nada no mundo dá mais prazer que beber nas águas da nossa tradição e dos nossos costumes: nenhuma água é mais fresca, nem mata a sede com mais eficiência.
Os italianos carregam essas tradições sem nenhuma obrigação, é por natureza e muito decidida, diga-se para reafirmar. Talvez seja o idioma deles. Já fiquei reparando nas vogais mais alongadas, no tom musical. Qualquer um que assistir ao 'cine paradiso' vai perceber como o personagem Alfredo tem um tom musical na voz, eu acho que o ator não bolou aquilo para a atuação (sem desmerecer seu excelente trabalho nesse filme), é de fato o jeito de falar.
Ocorreu-me agora aliar as duas artes em que os italianos se destacam: o cinema e a música, ou seja, as trilhas sonoras dos filmes italianos. São sempre sutis, ao contrário do que alguém mais apressado poderia pensar por serem italianos. Daí entrevê-se sua natureza: uma grande sensibilidade para fazer algo realmente belo, não precisa ser sempre efusivamente emotivo e exagerado, basta que seja tocante, puro, verdadeiro, profundo. Acho que a música italiana é exatamente assim. Tranqüilamente escuto as canções sobre incêndios, montanhas e pássaros e imagino que não haveria outro jeito de se fazer música popular. Afinal, a cultura popular através da música tem esse brilho notável, que na música popular da Itália fica muito claro.
Ao instalar-se nos meus pensamentos naquele sábado minha vida tornou-se uma música italiana por esses dias e tenho na imaginação dançado comigo mesmo como um bobo pela rua, ou mesmo pelo meu quarto, imaginando essa canção sem parar dentro de mim, claramente contaminado por aquela paixão e jogado dentro das minhas. Na canção há um coro bem discreto para fazer maior o ápice do timbre do cantor e violinos também ao fundo para que tudo fique bem dramático, mas nunca chega a ser tolo, vai-se ao extremo de carinho, tragédia, ternura, fatalismo, tudo com muita paixão.
Fico aqui então, queridos amigos, admirando a sonoridade ímpar do idioma italiano, formalmente cantado, nessas melodias cheias de idéias singelas e simples. Quem sabe agora uma outra canção menos exageradamente exaustiva, mas igualmente italiana?
quinta-feira, fevereiro 10, 2005
Lamúrias de um quase centurião romano
Sobre a mesa do restaurante, muito apropriadamente coberta com uma toalha xadrez em vermelho e branco, um homem já idoso sentou-se sem chamar a atenção de ninguém. Ao invés de encontrar por cima da mesa o saleiro, o vidro de pimenta, o de azeite e o paliteiro esse senhor percebeu que não havia nada e chamou pelo garção: "Meu filho, vê os temperos e o paliteiro, vocês tem de ser mais atenciosos, não como sem isso" e de resposta recebeu com alguma secura e pouca surpresa: "senhor Eduardo, são 9 horas da manhã, o almoço só é servido à partir das 11horas e 30 minutos", retira-se o garção e com os olhos na calçada fica o senhor Eduardo.
Depois de 10 anos como aposentado é difícil manter a calma ante o tédio da manhã. Para esse aposentado é pior que para os outros. O senhor Eduardo é general reformando, teve uma vida com muita ação e muito êxtase. Afinal, para um militar não se poderia considerar de outra maneira o período do regime militar em que milhares desapareceram e outros tantos foram mortos por "incompatibilidade política". Incontáveis foram as madrugadas nas celas de delegacias em que o charuto do então coronel Eduardo enfestava o ambiente com seu cheiro pesado de tabaco e preconceito, ao pesar indizível dos olhares de suas vítmas e no entremeio à fumaça e à luz forte da lâmpada naquele ambiente obscuro em que os pesadelos mais criativos são apenas piadas de mal gosto.
Há homens que revelam um prazer imenso com o poder, sentem-se como a razão da vida e do mundo exercendo sua influência e tornando-se visíveis a todos empunhando discretamente o símbolo de sua autoridade. A crueldade do coronel vinha muito desse seu orgulho, do prazer em afirmar que tratava-se de um homem "extraordinário", que não admitia ser contrariado. Junto desse seu prazer macabro, o mesmo orgulho impunha-lhe toda subserviência aos seus superiores, já que sua ambição era poder mais do que podia e não poupava gentilezas e cordialidades no trato social, nem tampouco eficiência no trato profissional tratando de "interrogar" os suspeitos e "deportar" os criminosos condenados por exceção.
Em casa não tirava a farda o nosso coronel Eduardo, que policiava a leitura dos filhos e ignorava os apelos da mulher para saber porquê sempre chegava tão tarde e tão irritado, ela não sabia, mas quebrar o espírito dos outros é muito cansativo, principalmente de quem age por algo que acredita com toda alma, o que espantava muito nosso coronel, que considerava essa conduta como "estúpida", e não é para menos, seu único ideal era ele mesmo.
Mas depois de tanto suor para torturar, depois de tanta medalha sem mérito sobre o peito, depois de tantos tapinhas nas costas dos lambe-botas maiores e de tanto deboche com o próprio país, resta sobre a mesa do restaurante essa figura decadente e envelhecida, sem mais poder ou influência, sem orgulho ou ganância, sem mais as baforadas pretensiosas e mal educadas no rosto dos seus subalternos.
A anistia ampla e irrestrita promovida no Brasil não foi suficiente para livrá-lo dos olhares de todos que sabiam daquele passado imperdoável. O grande subvertor da inteligência nacional, da cultura, da liberdade política não conseguia ver que o inimigo vencera. Numa negativa temente dessa verdade, apegado ao antigo modelo de ser, falar, pensar e agir, o novo Brasil era uma tortura para Eduardo, com o perdão da palavra, talvez não muito apropriada, mas talvez fosse isso mesmo: depois de tanto torturar, o torturador sentia-se torturado com a realidade que as suas unhas sujas não conseguiram sufocar e dia a dia o Brasil veio à tona com aquela tosse de afogado apontando para o assassino com o indicador direito: "foi ele!"
Os filhos casaram, a esposa morreu e sozinho na sua maravilhosa cobertura ele rememorava o que não era mais e de alguma forma pensava em como dar de comer ao seu orgulho, num exercício de imaginação que podemos realmente considerar como de bravura. Imerso nesses pensamentos e considerações sem fim as manhãs duravam um ano inteiro, sempre abruptamente interrompido pela necessidade de dar de comer a si próprio e sonambulamente ia a esse mesmo restaurante, sentando-se à mesma mesa e usando os mesmos temperos e paliteiro.
Esta manhã em que foi ao restaurante às 9 horas ao invés de às 12 como era seu costume, percebeu que seu ímpeto não faria as coisas serem como ele quisesse, como era antes, e compreendeu que terá de esperar o tempo passar, como todo mundo.
Depois de 10 anos como aposentado é difícil manter a calma ante o tédio da manhã. Para esse aposentado é pior que para os outros. O senhor Eduardo é general reformando, teve uma vida com muita ação e muito êxtase. Afinal, para um militar não se poderia considerar de outra maneira o período do regime militar em que milhares desapareceram e outros tantos foram mortos por "incompatibilidade política". Incontáveis foram as madrugadas nas celas de delegacias em que o charuto do então coronel Eduardo enfestava o ambiente com seu cheiro pesado de tabaco e preconceito, ao pesar indizível dos olhares de suas vítmas e no entremeio à fumaça e à luz forte da lâmpada naquele ambiente obscuro em que os pesadelos mais criativos são apenas piadas de mal gosto.
Há homens que revelam um prazer imenso com o poder, sentem-se como a razão da vida e do mundo exercendo sua influência e tornando-se visíveis a todos empunhando discretamente o símbolo de sua autoridade. A crueldade do coronel vinha muito desse seu orgulho, do prazer em afirmar que tratava-se de um homem "extraordinário", que não admitia ser contrariado. Junto desse seu prazer macabro, o mesmo orgulho impunha-lhe toda subserviência aos seus superiores, já que sua ambição era poder mais do que podia e não poupava gentilezas e cordialidades no trato social, nem tampouco eficiência no trato profissional tratando de "interrogar" os suspeitos e "deportar" os criminosos condenados por exceção.
Em casa não tirava a farda o nosso coronel Eduardo, que policiava a leitura dos filhos e ignorava os apelos da mulher para saber porquê sempre chegava tão tarde e tão irritado, ela não sabia, mas quebrar o espírito dos outros é muito cansativo, principalmente de quem age por algo que acredita com toda alma, o que espantava muito nosso coronel, que considerava essa conduta como "estúpida", e não é para menos, seu único ideal era ele mesmo.
Mas depois de tanto suor para torturar, depois de tanta medalha sem mérito sobre o peito, depois de tantos tapinhas nas costas dos lambe-botas maiores e de tanto deboche com o próprio país, resta sobre a mesa do restaurante essa figura decadente e envelhecida, sem mais poder ou influência, sem orgulho ou ganância, sem mais as baforadas pretensiosas e mal educadas no rosto dos seus subalternos.
A anistia ampla e irrestrita promovida no Brasil não foi suficiente para livrá-lo dos olhares de todos que sabiam daquele passado imperdoável. O grande subvertor da inteligência nacional, da cultura, da liberdade política não conseguia ver que o inimigo vencera. Numa negativa temente dessa verdade, apegado ao antigo modelo de ser, falar, pensar e agir, o novo Brasil era uma tortura para Eduardo, com o perdão da palavra, talvez não muito apropriada, mas talvez fosse isso mesmo: depois de tanto torturar, o torturador sentia-se torturado com a realidade que as suas unhas sujas não conseguiram sufocar e dia a dia o Brasil veio à tona com aquela tosse de afogado apontando para o assassino com o indicador direito: "foi ele!"
Os filhos casaram, a esposa morreu e sozinho na sua maravilhosa cobertura ele rememorava o que não era mais e de alguma forma pensava em como dar de comer ao seu orgulho, num exercício de imaginação que podemos realmente considerar como de bravura. Imerso nesses pensamentos e considerações sem fim as manhãs duravam um ano inteiro, sempre abruptamente interrompido pela necessidade de dar de comer a si próprio e sonambulamente ia a esse mesmo restaurante, sentando-se à mesma mesa e usando os mesmos temperos e paliteiro.
Esta manhã em que foi ao restaurante às 9 horas ao invés de às 12 como era seu costume, percebeu que seu ímpeto não faria as coisas serem como ele quisesse, como era antes, e compreendeu que terá de esperar o tempo passar, como todo mundo.
sexta-feira, fevereiro 04, 2005
Amanhã tudo volta ao normal
"Quanto riso! Oh, quanta alegria! Mais de mil palhaços no salão. O arlequim está chorando pelo amor da colombina no meio da multidão. 'Foi bom te ver outra vez, tá fazendo um ano, foi no carnaval que passou. Eu sou aquele Pierrot que te abraçou e te beijou, meu amor. A mesma máscara negra que esconde o teu rosto eu quero matar as saudades: vou beijar-te agora, não me leve a mal, hoje é carnaval!" Máscara Negra
Se o Carnaval é mesmo a festa popular em que se celebra a alegria e onde tudo o que é proibido fica por aqueles dias permitido eu vou me permitir a desconsiderar essa regra, sem bancar o casmurro. Sou livre inclusive para não me divertir, já que o carnaval guarda na sua alma esse apelo de frustração.
Não acho que seja o carnaval um produto, uma mentira, uma fraude ou qualquer coisa do gênero. Como eu considerei nas linhas acima, ele é uma festa, não é certo e nem justo querer demonizar os costumes populares, como fazem com o natal ou o dia das mães: em tudo isso há sentimento humano de muitos inocentes, o que merece algum respeito.
Muito da própria imagem que o brasileiro tem de si, além da imagem que o mundo tem dos brasileiros, vem dessa festa popular: um povo alegre. O Rio de Janeiro movimenta seu bilhão de dólares nesses dias de carnaval e todos ficam felizes. A alegria e a felicidade é a constante do carnaval. Não raro acha-se quem propõe ampliar a festa, transformando a quarta-feira de cinzas em quinta-feira de cinzas, mas não é propositado nem seria fiel ao espírito de felicidade momentânea que o carnval propõe, além disso, por esses entusiasmados foliões, viveríamos o mês de fevereiro todo em carnaval.
Poucos dias já bastam para extravazar tudo que tem acumulado nas horas de trabalho sem gosto, nas semanas a fio de murrinhas a aborrecimentos, nas limitações da vida, sempre tão dura e injusta. Daí o povo quer mesmo é ir pra rua, beber bastante, cantar, sair vestido de mulher, zuar com os que estão sérios, afinal, no carnaval tudo pode.
De toda maneira, lembro desde sempre desse drama do Pierrot, desse impulso de alegria interrompido por uma dor funda que ninguém vê, todos tontos de alegria. Como que uma brincadeira de mal gosto dos que dão alguma alegria para retirar em seguida, na grande imitação do que seria legítimo a partir insitação dos sonhos e vontades. Um jogo bruto.
Máscaras mais pesadas para os foliões, máscaras que não vão deixar ver dentro dos olhos os reais propósitos deles, capazes de transfigurar seus sentimentos e gestos com a mesma eficiência com que ele transfigura as palavras do pensamento para as palavras ditas, enquanto as serpentinas mais cumpridas vão cortando o salão de baile, num espetáculo estimulante para o olhar, como tiros que deixam cauda, são lançados e relançados e unem todo o corpo dançante de passistas e percusionistas a tremer juntos a batida do samba ou da marchinha.
Pois é no carnaval que me lembro de tudo isso dessa maneira deslavadamente sem esperança, esvazio o peito com um suspiro e aperto todos os músculos do corpo, dizendo pra mim mesmo: 'não vou aborrecer ninguém com isso', e é o que eu mais quero.
Que todos sejam muito felizes nesse carnaval e, cada qual a sua maneira, permitam-se ser felizes e tentem disseminar aquela sensação de não estar sendo visto por ninguém, daí já serão fiéis ao verdadeiro propósito do carnaval.
Se o Carnaval é mesmo a festa popular em que se celebra a alegria e onde tudo o que é proibido fica por aqueles dias permitido eu vou me permitir a desconsiderar essa regra, sem bancar o casmurro. Sou livre inclusive para não me divertir, já que o carnaval guarda na sua alma esse apelo de frustração.
Não acho que seja o carnaval um produto, uma mentira, uma fraude ou qualquer coisa do gênero. Como eu considerei nas linhas acima, ele é uma festa, não é certo e nem justo querer demonizar os costumes populares, como fazem com o natal ou o dia das mães: em tudo isso há sentimento humano de muitos inocentes, o que merece algum respeito.
Muito da própria imagem que o brasileiro tem de si, além da imagem que o mundo tem dos brasileiros, vem dessa festa popular: um povo alegre. O Rio de Janeiro movimenta seu bilhão de dólares nesses dias de carnaval e todos ficam felizes. A alegria e a felicidade é a constante do carnaval. Não raro acha-se quem propõe ampliar a festa, transformando a quarta-feira de cinzas em quinta-feira de cinzas, mas não é propositado nem seria fiel ao espírito de felicidade momentânea que o carnval propõe, além disso, por esses entusiasmados foliões, viveríamos o mês de fevereiro todo em carnaval.
Poucos dias já bastam para extravazar tudo que tem acumulado nas horas de trabalho sem gosto, nas semanas a fio de murrinhas a aborrecimentos, nas limitações da vida, sempre tão dura e injusta. Daí o povo quer mesmo é ir pra rua, beber bastante, cantar, sair vestido de mulher, zuar com os que estão sérios, afinal, no carnaval tudo pode.
De toda maneira, lembro desde sempre desse drama do Pierrot, desse impulso de alegria interrompido por uma dor funda que ninguém vê, todos tontos de alegria. Como que uma brincadeira de mal gosto dos que dão alguma alegria para retirar em seguida, na grande imitação do que seria legítimo a partir insitação dos sonhos e vontades. Um jogo bruto.
Máscaras mais pesadas para os foliões, máscaras que não vão deixar ver dentro dos olhos os reais propósitos deles, capazes de transfigurar seus sentimentos e gestos com a mesma eficiência com que ele transfigura as palavras do pensamento para as palavras ditas, enquanto as serpentinas mais cumpridas vão cortando o salão de baile, num espetáculo estimulante para o olhar, como tiros que deixam cauda, são lançados e relançados e unem todo o corpo dançante de passistas e percusionistas a tremer juntos a batida do samba ou da marchinha.
Pois é no carnaval que me lembro de tudo isso dessa maneira deslavadamente sem esperança, esvazio o peito com um suspiro e aperto todos os músculos do corpo, dizendo pra mim mesmo: 'não vou aborrecer ninguém com isso', e é o que eu mais quero.
Que todos sejam muito felizes nesse carnaval e, cada qual a sua maneira, permitam-se ser felizes e tentem disseminar aquela sensação de não estar sendo visto por ninguém, daí já serão fiéis ao verdadeiro propósito do carnaval.
quinta-feira, fevereiro 03, 2005
Taxistas
Hoje almocei no centro da cidade, indo e voltando de táxi. Na ida vimos que nosso restaurante combinado, o Fazendinha, estava fechado, decepção geral, já que a comida é excelente e seria dia de variar nos ambientes de pasto: celebramos hoje a folga do carnaval. Não se fazendo de rogado, o taxista nos deixou na esquina da rua Espírito Santo com a avenida Rio Branco e ainda desejou um bom almoço. Muito simpático esse senhor.
Fiquei pensando de onde vinha para ter tão bom humor, nada típico à sua profissão. Normalmente os taxistas são ríspidos e não raro mal educados, detêm entre alguns a fama de golpistas, já que aproveitam-se dos forasteiros fazendo percursos mais longos e encarecendo conseqüentemente a corrida, mas a fama não é justa, já que há muitos que são gentis e honestos, o fato é que os maus acabam aparecendo mais e fazendo a imagem pública da profissão, como acontece com tantos outros ramos de labuta.
Há alguns anos houve uma onde de violência contra taxistas. Eu mesmo assisti a uma audiência judicial em que o réu havia assaltado um taxista, há 2 anos. Um crime covarde, diga-se de passagem, já que o pobre homem tira o seu sustento dessa vigília de madrugada em busca de umas poucas corridas. Na verdade esse tipo de exposição que o taxista está sujeito mostra como esses trabalhadores são desfavorecidos. Muitos deles são mesmo empregados, não são donos do carro nem da permissão municipal, ou seja, ganham contado o salário. Além disso tem de agüentar um novo patrão a cada 15 minutos, algo que não deve ser nada agradável de todo. Ao menos o pagamento também é recebido a cada 15 minutos, boa vantagem no fim das contas.
Depois do almoço, novamente a bordo de taxi, voltamos ao escritório. Desta vez fui no banco da frente e fiz questão de puxar um assunto com o taxista. Perguntei sobre o tempo que tinha na profissão e se o taxi era seu. Secamente respondeu: "desde 1980... sim é meu." Na precisão de suas respostas, vislumbra-se esses 25 anos tentando ser simpático e recebendo no mínimo um sorriso amarelo. Não vale mesmo dar murro em ponta de faca, como diz o povo. Assim, o válido é ser educado, sem ser expansivo.
Quando eu mencionei sobre o perigo nas noites, sobre a violência a qual estão expostos ele mudou de relance a expressão do rosto, tirou uma das mãos do volante e passou pelo rosto a partir da testa: "sim, são covardes, fingem-se de clientes, pedem corrida para um lugar remoto, roubam o motorista, às vezes o dinheiro de um dia inteiro de trabalho..." fez uma pausa e prosseguiu com mais ímpeto: "mas assim ainda vale, ruim é quando são brutos, agridem ou matam para roubar o carro, esses são piores, psicopatas, os carros de madrugada são populares e nem têm tanto valor, e para que matar se ninguém reage?" terminou indignado. Respondi apenas "sim, o senhor tem toda razão." Acho que todos ficaram pensando sobre aquilo, ele mesmo revelou em seguida que trabalhou alguns anos à noite e que com essa onda de violência contra sua classe, alguns colegas morreram e muitos foram assaltados.
Depois de mais uns 10 minutos estávamos de frente para a fachada do prédio onde fica o escritório, em silêncio, pagou-se pela corrida e saímos todos agradecendo a um honesto trabalhador brasileiro.
Fiquei pensando de onde vinha para ter tão bom humor, nada típico à sua profissão. Normalmente os taxistas são ríspidos e não raro mal educados, detêm entre alguns a fama de golpistas, já que aproveitam-se dos forasteiros fazendo percursos mais longos e encarecendo conseqüentemente a corrida, mas a fama não é justa, já que há muitos que são gentis e honestos, o fato é que os maus acabam aparecendo mais e fazendo a imagem pública da profissão, como acontece com tantos outros ramos de labuta.
Há alguns anos houve uma onde de violência contra taxistas. Eu mesmo assisti a uma audiência judicial em que o réu havia assaltado um taxista, há 2 anos. Um crime covarde, diga-se de passagem, já que o pobre homem tira o seu sustento dessa vigília de madrugada em busca de umas poucas corridas. Na verdade esse tipo de exposição que o taxista está sujeito mostra como esses trabalhadores são desfavorecidos. Muitos deles são mesmo empregados, não são donos do carro nem da permissão municipal, ou seja, ganham contado o salário. Além disso tem de agüentar um novo patrão a cada 15 minutos, algo que não deve ser nada agradável de todo. Ao menos o pagamento também é recebido a cada 15 minutos, boa vantagem no fim das contas.
Depois do almoço, novamente a bordo de taxi, voltamos ao escritório. Desta vez fui no banco da frente e fiz questão de puxar um assunto com o taxista. Perguntei sobre o tempo que tinha na profissão e se o taxi era seu. Secamente respondeu: "desde 1980... sim é meu." Na precisão de suas respostas, vislumbra-se esses 25 anos tentando ser simpático e recebendo no mínimo um sorriso amarelo. Não vale mesmo dar murro em ponta de faca, como diz o povo. Assim, o válido é ser educado, sem ser expansivo.
Quando eu mencionei sobre o perigo nas noites, sobre a violência a qual estão expostos ele mudou de relance a expressão do rosto, tirou uma das mãos do volante e passou pelo rosto a partir da testa: "sim, são covardes, fingem-se de clientes, pedem corrida para um lugar remoto, roubam o motorista, às vezes o dinheiro de um dia inteiro de trabalho..." fez uma pausa e prosseguiu com mais ímpeto: "mas assim ainda vale, ruim é quando são brutos, agridem ou matam para roubar o carro, esses são piores, psicopatas, os carros de madrugada são populares e nem têm tanto valor, e para que matar se ninguém reage?" terminou indignado. Respondi apenas "sim, o senhor tem toda razão." Acho que todos ficaram pensando sobre aquilo, ele mesmo revelou em seguida que trabalhou alguns anos à noite e que com essa onda de violência contra sua classe, alguns colegas morreram e muitos foram assaltados.
Depois de mais uns 10 minutos estávamos de frente para a fachada do prédio onde fica o escritório, em silêncio, pagou-se pela corrida e saímos todos agradecendo a um honesto trabalhador brasileiro.
quarta-feira, fevereiro 02, 2005
Juiz de Fora
Falar sobre cidades para alguns pode parecer tolo... já dizia Drummond em versos: 'Não cante tua cidade/deixe-a em paz', de todo jeito é errado ignorar que o lugar em que se vive transmite algo à alma. Talvez seja a disposição geral das pessoas, o modo de pensar e agir, talvez ainda sua idéia de civismo - virtude tão preciosa na vida em comum, o fato é que viver numa cidade é transpirar seu espírito. Deste modo, se pode-se amar seu país, porque não amar sua cidade, onde vive-se de fato?
Pois o melhor é viver num lugar que se ama, se for belo, melhor ainda. Juiz de Fora parece-me assim muitas das vezes. Logo nos meus primeiros meses sentia aquele frio matinal da avenida Rio Branco na janela do quarto e via as pessoas indo trabalhar tão calminhas, conversando muitas das vezes e amanhecendo um belo dia nessa avenida que explicaram-me uma vez como 'coluna vertebral' da Juiz de Fora antiga.
Do orgulho de ter sido a mais industrializada cidade da América Latina no início do século XX, sobrou a economia estagnada e voltada para a pequena e média indústria, sobretudo téxtil, seu comércio e setor de serviços diversificados. Apesar do aparente bem estar que é sentido por todo canto, Juiz de Fora une-se a Ouro Preto se investiga-se a coisa a fundo e vê-se que os tempos áureos já passaram. Os palácios da Avenida Rio Branco já foram quase todos demolidos para dar lugar a prédios de escritórios e estacionamentos, (uma antiga mansão abandonada, inclusive, foi há poucos dias ocupada pelos sem-teto), os complexos industriais foram convertidos em recintos culturais, o palacete dos Ferreira Lage, então pertencente à família mais rica do Brasil naquela época, foi convertido em museu e todo resplendor, pompa e riqueza daqueles tempos resta, assim, encrustado na frustração de não ser mais na sua versão moderna e isso sente-se facilmente quando se conhece Juiz de Fora.
Como coração pulsante do sudeste mineiro, entretanto, sua decadência fica amenizada nos detalhes tão típicos e tão decididos: as colônicas gêrmanicas com seus mestres cervejeiros e suas lavadeiras de roupa, o sábado à tarde na rua Halfeld, o olhar enigmático que o Paraibuna pede para si quando transpõe-se uma de suas pontes: Botanágua! Sim, Botanágua, bairro onde a polícia acostumou-se a ir buscar cadáveres nas segunda-feiras, devido ao remanso do rio que fica lá... No dito antigo que nomeou o bairro: 'morreu? Bota n'água!'
O fato de abrigar uma das melhores universidades do país também tem contribuído, desde os anos de 1960, para movimentar a economia e a vida social juizforana. A Universidade Federal de Juiz de Fora ajudou a construir esse caráter estudantil verdadeiramente e atrair mais estudantes do que seu vestibular admitia, de modo que também surgiram faculdades particulares e vê-se claramente a multidão de universitários na cidade que, rememorando agora sua fundação de fato no século XVIII, quando servia de pouso para as tropas que iam para o porto de Parati, percebe seu acaso sedutor, envolvente aos forasteiros e que acaba fazendo novos cidadãos (e não simplesmente moradores) e de fato esses 'tropeiros contemporâneos' conseguem ter de Juiz de Fora muito mais do que descanso.
Grande parte deles vindo de outros lugares, deixam seus lares para ir estudar numa cidade onde não têm nenhum amigo, mas é aqui que fica o maior segredo de Juiz de Fora: a hospitalidade e a discrição do povo. Nesse aspecto, tomo a defesa da cidade contra os que chamam os seus cidadãos de 'cariocas-do-brejo', na clara insinuação de que a cultura local é dependente do Rio de Janeiro. O próprio caráter do juizforano deixa claro que ele é muitíssimo mineiro: discreto, desconfiado, nunca um amigo ocasional, mas por vezes o amigo da vida inteira, emotivo e discreto, detesta gente presunçosa e folgada, gosta do trabalho e tem no futuro sua bandeira, sim, creio que é o traço marcante, ao menos de todos os meus queridos amigos juizforanos. Sendo tando, não precisam ser influenciados por ninguém, nem 'cariocas-do-brejo', nem 'mineiros-da-grota', apenas juizforanos.
Marcadamente se o povo reflete mesmo um caráter comum, um jeito comum de ver as coisas, de pensar e sentir a vida social, espero ter contribuído por esses anos para manter com minha conduta a fascinante vertente do espírito juizforano de simplicidade, discrição, verdade e amor com a qual me identifiquei à primeira brisa na manhã da avenida Rio Branco.
Pois o melhor é viver num lugar que se ama, se for belo, melhor ainda. Juiz de Fora parece-me assim muitas das vezes. Logo nos meus primeiros meses sentia aquele frio matinal da avenida Rio Branco na janela do quarto e via as pessoas indo trabalhar tão calminhas, conversando muitas das vezes e amanhecendo um belo dia nessa avenida que explicaram-me uma vez como 'coluna vertebral' da Juiz de Fora antiga.
Do orgulho de ter sido a mais industrializada cidade da América Latina no início do século XX, sobrou a economia estagnada e voltada para a pequena e média indústria, sobretudo téxtil, seu comércio e setor de serviços diversificados. Apesar do aparente bem estar que é sentido por todo canto, Juiz de Fora une-se a Ouro Preto se investiga-se a coisa a fundo e vê-se que os tempos áureos já passaram. Os palácios da Avenida Rio Branco já foram quase todos demolidos para dar lugar a prédios de escritórios e estacionamentos, (uma antiga mansão abandonada, inclusive, foi há poucos dias ocupada pelos sem-teto), os complexos industriais foram convertidos em recintos culturais, o palacete dos Ferreira Lage, então pertencente à família mais rica do Brasil naquela época, foi convertido em museu e todo resplendor, pompa e riqueza daqueles tempos resta, assim, encrustado na frustração de não ser mais na sua versão moderna e isso sente-se facilmente quando se conhece Juiz de Fora.
Como coração pulsante do sudeste mineiro, entretanto, sua decadência fica amenizada nos detalhes tão típicos e tão decididos: as colônicas gêrmanicas com seus mestres cervejeiros e suas lavadeiras de roupa, o sábado à tarde na rua Halfeld, o olhar enigmático que o Paraibuna pede para si quando transpõe-se uma de suas pontes: Botanágua! Sim, Botanágua, bairro onde a polícia acostumou-se a ir buscar cadáveres nas segunda-feiras, devido ao remanso do rio que fica lá... No dito antigo que nomeou o bairro: 'morreu? Bota n'água!'
O fato de abrigar uma das melhores universidades do país também tem contribuído, desde os anos de 1960, para movimentar a economia e a vida social juizforana. A Universidade Federal de Juiz de Fora ajudou a construir esse caráter estudantil verdadeiramente e atrair mais estudantes do que seu vestibular admitia, de modo que também surgiram faculdades particulares e vê-se claramente a multidão de universitários na cidade que, rememorando agora sua fundação de fato no século XVIII, quando servia de pouso para as tropas que iam para o porto de Parati, percebe seu acaso sedutor, envolvente aos forasteiros e que acaba fazendo novos cidadãos (e não simplesmente moradores) e de fato esses 'tropeiros contemporâneos' conseguem ter de Juiz de Fora muito mais do que descanso.
Grande parte deles vindo de outros lugares, deixam seus lares para ir estudar numa cidade onde não têm nenhum amigo, mas é aqui que fica o maior segredo de Juiz de Fora: a hospitalidade e a discrição do povo. Nesse aspecto, tomo a defesa da cidade contra os que chamam os seus cidadãos de 'cariocas-do-brejo', na clara insinuação de que a cultura local é dependente do Rio de Janeiro. O próprio caráter do juizforano deixa claro que ele é muitíssimo mineiro: discreto, desconfiado, nunca um amigo ocasional, mas por vezes o amigo da vida inteira, emotivo e discreto, detesta gente presunçosa e folgada, gosta do trabalho e tem no futuro sua bandeira, sim, creio que é o traço marcante, ao menos de todos os meus queridos amigos juizforanos. Sendo tando, não precisam ser influenciados por ninguém, nem 'cariocas-do-brejo', nem 'mineiros-da-grota', apenas juizforanos.
Marcadamente se o povo reflete mesmo um caráter comum, um jeito comum de ver as coisas, de pensar e sentir a vida social, espero ter contribuído por esses anos para manter com minha conduta a fascinante vertente do espírito juizforano de simplicidade, discrição, verdade e amor com a qual me identifiquei à primeira brisa na manhã da avenida Rio Branco.
terça-feira, fevereiro 01, 2005
Pureza de coração
Ontem tive uma conversa muito produtiva com meu vizinho Luciano Amparo. Ambos estávamos na praça do bairro (agora reformada e apta a receber os namorados, para a alegria dos poetas), quando não pude deixar de reparar a sua angústia ao observar uma senhora de meia-idade carregando junto ao corpo uma sacola de compras cheia de guloseimas, como doce de leite, iogurtes, figos em calda, bombons e assemelhados.
Meu vizinho perdera o olhar fixo que observava a partida animada de futebol de salão, para seguir passo por passo a tragetória da senhora com seus embrulhos sortidos. "Que foi, Luciano? Sua mãe não te deu sobremesa hoje não?", "Não, briguei com a minha maninha, só ganho chocolate no sábado... já tentei levar a dona Maria [dona da padaria da esquina] no papo, mas ela é esperta, sabe que eu só faço tratos quando tou empedido... como ela sabe dessas coisas? Eu e o Paulo [irmão mais novo do Luciano] achamos que ela vê o medo nos olhos, como os leões antes de atacar e daí sabe que é algo errado..."
Conversei com o Luciano mais uns bons vinte minutos sobre o 'olhar da padeira' e tentei convencê-lo a não imaginar coisas, mas no alto de seus 7 anos completos, essa é a pior estratégia. Daí em diante, quando percebi que bancar o pedagogo de fim-de-semana não iria adiantar, resolvi mudar o enredo.
"Sabe, Luciano, eu não devia te contar isso porque é o segredo internacional de todos os adultos e nós prometemos quando completamos 18 anos a nunca revelar a uma criança." Nesse instante seus imensos olhos verdes ficaram com três vezes mais brilho e mais saltados, não piscava, não salivava, a goma de mascar imediatamente jogou longe, ficava apenas olhando para e repetindo efusivamente à velocidade de 15 vezes por minuto: "o que é?"
Daí vi que já podia prosseguir, sabia que sua mente gravaria para sempe cada palavra, por isso tratei de ser bastante cuidadoso: "Com 18 anos, é-nos revelado que jamais poderemos novamente ver as flores do mesmo jeito, nem amar os animais da mesma maneira, não teremos mais a faculdade de sorrir simplesmente porque amanheceu um dia de sol, nem tampouco seremos indiferentes às garotas bonitas..." Essa saiu sem querer, não pude evitar. "Mas em compensação a não ver mais o mundo como criança, ganhamos uma nova habilidade: o poder de sonhar com o que quisermos" Nesse momento Luciano deixou o queixo cair um pouco e ao perceber seu espanto ante à revelação do segredo, prossegui mais confiante. "Há os que desejam sonhar com a família que mora noutra cidade, daí passam todos a sonhar o mesmo sonho e a festejar e a rir até fartar-se por estarem juntos de novo, outros sonham em conquistar um amor secreto e seu sonho é justamente um encontro feliz e afortunado dos dois onde tudo é perfeito, outros ainda preferem usar essa mágica habilidade para prevenir as desgraças que a vida vai trazer e tem sonhos tumultuados, cheios de cobradores bravos e chantagistas de bigodes finos com o cabelo penteado para trás e cheio de gel. Os adultos vivem no mundo de seus sonhos e quando acordam ficam às vezes frustrados pelo fim do sonho, às vezes aliviados, mas de todo jeito sempre acordam. A dona Maria deve ter pedido para sonhar com todos que mentiriam para ela no dia seguinte e então, entre o marido e a filha adolescente, estava você, docemente tentando ludibriá-la a vender-lhe chocolate."
O garoto engoliu seco rememorando a vergonha de ter sido pego em flagrante sem perceber e balançando a cabeça pra frente sistematicamente interrompeu: "Pois é verdade, quando entrei na padaria ela já me olhava de outro jeito!" Ficou quieto um instante e depois começou a fazer o que as crianças mais fazem, ou seja, perguntou: "E do segredo ao completar 18 anos, pode-se não querer saber e simplesmente continuar vendo tudo como criança e ainda não decidir sobre o que se vai sonhar?" Muito bem, pensei eu, "uns acham que é inevitável deixar de ver tudo como criança e passar a desejar os sonhos que quiser..." Depois perguntou o que eu achava e eu disse "na verdade acho tudo isso uma grande bobagem, por que ver as coisas de um jeito que não são? Por que sonhar se pode-se viver?" Daí Luciano fez sua consideração mais apropriada: "é justamente o que eu acho disso, mas com outras palavras", "pois sim? E quais seriam?", "ser adulto é complicar tudo o que é mais simples".
Eu, olhando meu amiguinho de 7 anos de idade com um sorriso, concordei sem pestanejar e convidei-lhe pra ir tomar um sorvete, sem nenhum receio de desfilar com o gelado na frente da dona Maria, a padeira.
Meu vizinho perdera o olhar fixo que observava a partida animada de futebol de salão, para seguir passo por passo a tragetória da senhora com seus embrulhos sortidos. "Que foi, Luciano? Sua mãe não te deu sobremesa hoje não?", "Não, briguei com a minha maninha, só ganho chocolate no sábado... já tentei levar a dona Maria [dona da padaria da esquina] no papo, mas ela é esperta, sabe que eu só faço tratos quando tou empedido... como ela sabe dessas coisas? Eu e o Paulo [irmão mais novo do Luciano] achamos que ela vê o medo nos olhos, como os leões antes de atacar e daí sabe que é algo errado..."
Conversei com o Luciano mais uns bons vinte minutos sobre o 'olhar da padeira' e tentei convencê-lo a não imaginar coisas, mas no alto de seus 7 anos completos, essa é a pior estratégia. Daí em diante, quando percebi que bancar o pedagogo de fim-de-semana não iria adiantar, resolvi mudar o enredo.
"Sabe, Luciano, eu não devia te contar isso porque é o segredo internacional de todos os adultos e nós prometemos quando completamos 18 anos a nunca revelar a uma criança." Nesse instante seus imensos olhos verdes ficaram com três vezes mais brilho e mais saltados, não piscava, não salivava, a goma de mascar imediatamente jogou longe, ficava apenas olhando para e repetindo efusivamente à velocidade de 15 vezes por minuto: "o que é?"
Daí vi que já podia prosseguir, sabia que sua mente gravaria para sempe cada palavra, por isso tratei de ser bastante cuidadoso: "Com 18 anos, é-nos revelado que jamais poderemos novamente ver as flores do mesmo jeito, nem amar os animais da mesma maneira, não teremos mais a faculdade de sorrir simplesmente porque amanheceu um dia de sol, nem tampouco seremos indiferentes às garotas bonitas..." Essa saiu sem querer, não pude evitar. "Mas em compensação a não ver mais o mundo como criança, ganhamos uma nova habilidade: o poder de sonhar com o que quisermos" Nesse momento Luciano deixou o queixo cair um pouco e ao perceber seu espanto ante à revelação do segredo, prossegui mais confiante. "Há os que desejam sonhar com a família que mora noutra cidade, daí passam todos a sonhar o mesmo sonho e a festejar e a rir até fartar-se por estarem juntos de novo, outros sonham em conquistar um amor secreto e seu sonho é justamente um encontro feliz e afortunado dos dois onde tudo é perfeito, outros ainda preferem usar essa mágica habilidade para prevenir as desgraças que a vida vai trazer e tem sonhos tumultuados, cheios de cobradores bravos e chantagistas de bigodes finos com o cabelo penteado para trás e cheio de gel. Os adultos vivem no mundo de seus sonhos e quando acordam ficam às vezes frustrados pelo fim do sonho, às vezes aliviados, mas de todo jeito sempre acordam. A dona Maria deve ter pedido para sonhar com todos que mentiriam para ela no dia seguinte e então, entre o marido e a filha adolescente, estava você, docemente tentando ludibriá-la a vender-lhe chocolate."
O garoto engoliu seco rememorando a vergonha de ter sido pego em flagrante sem perceber e balançando a cabeça pra frente sistematicamente interrompeu: "Pois é verdade, quando entrei na padaria ela já me olhava de outro jeito!" Ficou quieto um instante e depois começou a fazer o que as crianças mais fazem, ou seja, perguntou: "E do segredo ao completar 18 anos, pode-se não querer saber e simplesmente continuar vendo tudo como criança e ainda não decidir sobre o que se vai sonhar?" Muito bem, pensei eu, "uns acham que é inevitável deixar de ver tudo como criança e passar a desejar os sonhos que quiser..." Depois perguntou o que eu achava e eu disse "na verdade acho tudo isso uma grande bobagem, por que ver as coisas de um jeito que não são? Por que sonhar se pode-se viver?" Daí Luciano fez sua consideração mais apropriada: "é justamente o que eu acho disso, mas com outras palavras", "pois sim? E quais seriam?", "ser adulto é complicar tudo o que é mais simples".
Eu, olhando meu amiguinho de 7 anos de idade com um sorriso, concordei sem pestanejar e convidei-lhe pra ir tomar um sorvete, sem nenhum receio de desfilar com o gelado na frente da dona Maria, a padeira.
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